Cachaça infusionada com goiaba, farofa de ostra fresca, gim feito com água da Mata Atlântica, queijo com medalha de ouro do World Cheese Awards, sashimi de piranha e ambrosia de leite de búfala. Essas receitas poderiam figurar no cardápio dos restaurantes mais renomados da capital paulista, mas são criações de empreendedores, cozinheiros, pescadores e pequenos produtores que se espalham por municípios do interior e litoral de São Paulo.
Com a premissa de trabalhar a gastronomia como ferramenta para alavancar o turismo nas diferentes regiões geográficas do Estado, o núcleo de inteligência Mundo Mesa se uniu à Secretaria de Turismo e Viagens do Estado de São Paulo (Setur - SP) para criar o programa Rotas Gastronômicas do Estado de São Paulo.
Segundo Georges Schnyder, sócio do Mundo Mesa, o núcleo está há dez anos desenvolvendo o projeto junto com o governo e chegou a mapear 900 pontos gastronômicos ao longo desse período. “Mas somente mapear esses pontos não seria suficiente; era necessário ter o produto turístico para que as pessoas, agências e operadoras pudessem enxergar isso claramente.”
Durante a pandemia, eles se debruçaram sobre o assunto, coordenando as pesquisas nas rotas que já existiam no Estado: Circuito das Águas e Flores, Vale do Ribeira, Mantiqueira Paulista e Litoral Norte. A partir daí foram definidas 15 rotas gastronômicas. Em cada uma delas, o projeto buscou interlocutores turísticos que indicassem empreendedores com potencial para receber visitantes. Depois de filtrar as indicações, chegaram à receita final: 15 empreendedores para cada rota, sendo 5 restaurantes e estabelecimentos de comida e 10 produtores.
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Das 15 rotas, 7 já foram lançadas, com foco em atrair - em um primeiro momento - o turismo de proximidade. O programa realizou ainda reuniões de entrega dos materiais profissionais de divulgação desenvolvidos pelo Mundo Mesa para cada participante, o que acabou fomentando o networking entre eles.
“Muitos não se conheciam antes e começaram a articular parcerias e fechar negócios entre si”, diz Schnyder, revelando que foi criado também um fórum permanente com todos os atores do projeto, para que ele continue a existir, independentemente de mudanças no cenário político.
“É um dos projetos mais legais de desenvolvimento territorial que existem no País. Essas pessoas estão se profissionalizando, houve uma mudança de mindset. A ideia é que seja realmente um legado para a continuidade”, conclui.
De Amparo para o mundo
Com 160 anos de história, a Fazenda Atalaia, localizada em Amparo, faz parte da rota gastronômica Circuito das Frutas, Águas e Flores Paulista, Bem Viver e Roteiro dos Bandeirantes. Hoje administrada pelo casal de fazendeiros e empresários Rosana e Paulo Rezende, a propriedade cafeeira passou a pertencer aos avós maternos de Paulo, em 1939. Era lá que ele sempre passava as férias, ainda menino.
“Eu ficava absolutamente envolvido com isso aqui e foi nascendo o sonho de viver da e na fazenda”, conta. Determinado, ele se formou em agronomia na UFSCAR e foi trabalhar na região de Brasília, onde conheceu Rosana, filha de pequenos produtores. Os dois falam que os planos de se casarem, saírem de seus empregos e irem morar na Atalaia nortearam o namoro desde o início.
Na época, a fazenda continuava a cultivar café e produzia 40 litros diários de leite, vendidos para um laticínio local. Depois de um tempo o laticínio fechou e Rosana, que acabara de ter o primeiro filho, ficou pensando em como conciliar o trabalho à maternidade sem sair da Atalaia.
Com a medalha de ouro do queijo, viramos notícia e as pessoas começaram a querer conhecer a fazenda
Rosana Rezende
A solução veio do leite que precisava de destinação. “Na minha família, quase tudo que a gente comia era produzido em casa, do pão ao queijo aos doces e bolos”, lembra. “Eu disse que conseguia processar aquele leite para não perder. Aí comecei a fazer queijo e saí vendendo de porta em porta. Como minha sogra conhecia todo mundo na cidade, eu vendia tudo.”
Depois vieram os doces, feitos com frutas do pomar da fazenda. A história foi criando corpo e Paulo decidiu se envolver para transformar o negócio. O cultivo de café foi cedendo lugar à criação de animais, que forneciam leite para a produção de uma série de queijos e produtos mais frescos.
A grande virada, no entanto, veio com a maturação de queijos. O primeiro queijo maturado, o Tulha, foi descoberto por chefs como Alex Atala e Helena Rizzo e ganhou medalha de ouro no World Cheese Awards, maior competição de queijos do mundo. “Viramos notícia e as pessoas começaram a querer conhecer a fazenda. Aí fomos nos adequando dia após dia porque não tínhamos estrutura para receber. Com o cliente aqui, nosso olhar mudou por completo”, diz Rosana.
Hoje a Atalaia produz 6 mil litros de leite e cerca de 600 quilos de queijo por dia. Após a migração para queijos com identidade própria, os ambientes naturais da própria fazenda se tornaram espaços para a maturação dos produtos. O casal também investe constantemente na manutenção e restauro da fazenda - tudo conduzido por um arquiteto que tem formação em história da arte - e o público pode conferir o resultado em experiências numa visita guiada, com almoço e café da manhã.
“Recebemos pessoas de todos os cantos do Estado”, afirma Paulo. “O ativamento dos pólos turísticos é um estímulo para dar uma cara nova a circuitos que já existiam, mas estavam meio esquecidos. Muda tudo. É a noção de que é possível um pequeno empreendedor ser bem sucedido.”
Da engenharia e da química à criação de ovelhas
Na mesma rota, a Cabanha Campestre 53, localizada em uma área de proteção ambiental na Serra das Cabras, em Joaquim Egídio, também nasceu de uma história familiar. O engenheiro mecânico Genivaldo Pimenta e a química Daniele Santos contam que o interesse por cabras e ovelhas começou por causa da filha, que desenvolveu intolerância à lactose ainda nova.
Na época não tinha produtos para esse público nos supermercados. Quando Daniele foi fazer o doutorado e Genivaldo um curso de especialização na Espanha, 20 anos atrás, eles moraram por dois anos numa vila rural perto da cidade e se apaixonaram por aquela vida. Aí decidiram que a terceira carreira deles, na volta ao Brasil, uniria a tecnologia à vida campestre.
Segundo Daniele, hoje a propriedade tem três atividades principais: a criação de ovelhas da raça Lacaune, com aptidão para produção de leite e lã; produção de queijos maturados e mofados, iogurtes e doce de leite, todos derivados do leite de ovelha; e a produção de peças únicas de artesanato em lã para uso e decoração.
A propriedade também oferece experiências abertas ao público, divididas em visitas guiadas, oficinas e degustação. A visitação, sempre agendada, acontece pelo menos duas vezes ao mês, quando recebem grupos de até 20 pessoas.
“Abrimos para o público conhecer o manejo dos animais, ter interação com os filhotes, acompanhar a ordenha e participar da degustação de produtos”, afirma a empreendedora.
“O programa (das rotas) foi uma grande oportunidade para expor os produtos para grandes chefs e para o público que busca não só o alimento saudável, mas também conhecer e entender como é feito e de onde vem, encurtando a cadeia entre o pequeno produtor e o consumidor final.”
Gim caiçara
Agora viajando para a beira-mar, na rota Baixada Santista e Litoral Norte, um dos destaques do programa é a destilaria Single Fin Gin, na Barra do Sahy. Os sócios, Miguel Arasaki e Mathias Lessmann, se conheceram nos tempos de escola, unidos pelo amor ao surfe.
Depois da formatura, porém, cada um tomou um rumo: Miguel foi para a Alemanha cursar economia, entrou em contato com o mundo das destilarias e se apaixonou pelo tema; Mathias se formou em relações internacionais e passou seis anos na Austrália, trabalhando com esportes extremos e produzindo documentários de expedições remotas. Na volta, encabeçou o projeto Embu Agroflorestal no Ceará, que mantém até hoje.
“A gente se reencontrou em 2018, cada um buscando uma coisa parecida, mas vindo de backgrounds diferentes”, conta Mathias. “Queríamos alguma coisa que tivesse um link com natureza e com o litoral, além de trazer um lado de empreendedorismo e inovação para a região.”
Naquele ano, Miguel já tinha um alambique pequeno e a ideia de produzir gim. “A gente se juntou nessa ideia e conseguiu criar a Single Fin do zero, desde a rotulagem e garrafa até a produção do próprio alambique, que foi customizado”, conta o empreendedor.
A ideia andou rápido. A dupla reformou uma casa para montar a destilaria, onde utiliza água da própria Mata Atlântica, com um sistema próprio de captação. Hoje a marca produz 2 mil litros de gim por mês, que distribui para o varejo e no e-commerce, e recebe a visitação de 50 a 100 pessoas semanalmente, de quarta a domingo, em um lounge inaugurado mais recentemente no espaço. “Hoje nosso principal produto é o Single Fin Gin, mas já estamos lançando mais três rótulos nos próximos meses”, revela o empreendedor.
Plantando a semente
Nos entornos de Andradina, que fica a 630 km da capital e faz parte da rota gastronômica Pantanal e Tietê Vivo, a história da comunidade Ribeirinhos Renascer, no Timboré, traz uma novidade exótica. Ali vivem Anderson Caetano e sua esposa, Kelly. Ele conta que os pescadores locais preparavam e comiam sashimi muito antes de a especialidade japonesa virar febre.
Quem transmitiu a técnica foi seu tio-avô, carinhosamente chamado de tio Nico, que começou a levá-lo para pescar quando tinha apenas 12 anos. Pescavam a piranha, abundante na parte limpa do rio Tietê, e comiam ali mesmo, no barco. “Ele falava que no começo salgava com o sal boiadeiro, aquele bem rústico mesmo, e colocava limão-cravo. Hoje a gente já tem coisa mais atual, como shoyu, gengibre, molho inglês”, conta.
Anderson acompanhou o tio-avô ao longo da velhice, até que ele se foi. Mas a tradição do sashimi do tio Nico ficou. O casal costuma preparar a receita para amigos, parentes e vizinhos da comunidade. O casal se surpreendeu quando recebeu a visita da Secretaria de Turismo de Andradina para saber se gostariam de entrar no programa. “Eles vieram e perguntaram se a gente teria condições de falar alguma coisa sobre o que a gente servia aqui em casa. E aí a Kelly falou do sashimi de piranha”, diz o pescador.
O projeto está começando a sair do papel, segundo ele. Depois de participar do encontro com os outros empreendedores da rota, o casal está no processo de abrir o CNPJ e se preparar para começar a receber pessoas já em 2023. O sonho é também montar um camping para fazer turismo ecológico, mostrando aos visitantes a fauna e a flora da região, com passeios de barco, pescaria e degustação preparada na hora.
“O meu sonho é que, quando abrir a pesca, a gente consiga emplacar parcerias com os pescadores locais. Ter gente abraçando esse sonho é uma semente de mostarda, sabe? A gente também visa uma mudança para o pessoal daqui, da comunidade. E mudar esse conceito de só depredar a natureza porque aqui somos coletores, não depredadores”, diz o pescador.
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