Especial para o Estado
Depois de sofrer um acidente de carro em junho de 2001 e ficar paraplégico aos 17 anos de idade, o então estudante Bruno Mahfuz se deu conta de que sua rotina mudaria completamente. A busca pela acessibilidade, longe de ser prioritária até então, tornou-se um dos ideais não só da sua vida como do próprio negócio do administrador de empresas.
Mahfuz não está sozinho. Outras pessoas com deficiência também partem de suas vivências para criar e inspirar soluções de acessibilidade, combatendo as dores dos clientes com base nas próprias experiências. Dados do último Censo do IBGE, de 2010, somaram 12,8 milhões de pessoas, ou 6,7% da população daquela época, que relataram enfrentar dificuldade na rotina por conta de deficiência (visual, auditiva, motora ou mental).
“Empreender na área é excelente e péssimo ao mesmo tempo. Isso porque, ainda que a importância da causa seja incontestável, poucos a tratam como prioridade”, diz Mahfuz, ao destacar o senso de urgência de pessoas com deficiência na busca por soluções.
Fundador e CEO do Guiaderodas, ferramenta criada em 2016 em São Paulo para avaliação e consulta da acessibilidade motora de estabelecimentos, o empreendedor foi apontado em 2018 pela MIT Technology Review como um dos maiores inovadores com menos de 35 anos de idade na América Latina e já teve sua solução premiada duas vezes pela ONU.
Presente em 2 mil cidades de 116 países, o Guiaderodas decorre da experiência de cadeirante do próprio Mahfuz. “Quando vou a um restaurante, mais importante do que descobrir se há boa comida, ambiente agradável e preço justo, é saber se vou conseguir ir ao banheiro”, explica. Disponível para download gratuito, o app dispõe de cinco perguntas para o usuário avaliar a acessibilidade dos locais e, a partir das respostas, os classifica com base nos feedbacks dos usuários.
Além do apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que permitiu a contratação de cinco bolsistas de tecnologia e marketing, o Guiaderodas também obtém receita a partir de serviços de consultoria prestados por Mahfuz e certificações de acessibilidade dadas a estabelecimentos.
No caso do analista de sistemas Felipe Barros, surdo desde os 2 anos de idade devido a uma meningite, a comunicação em libras o levou ao empreendedorismo. Em Belo Horizonte, fundou em 2016 a SignumWeb, cujo objetivo é promover a acessibilidade para surdos por videoconferências.
Com sete colaboradores e mais de 160 intérpretes cadastrados, a startup atende empresas, como Burger King e Drogaria Araújo, que desejam oferecer a clientes com deficiência a opção de contar com um intérprete de forma remota. Com seis clientes recorrentes, a SignumWeb teve faturamento de R$ 80 mil em 2019.
“Foi marcante quando minha esposa, que também é surda, passou mal e, ao chegarmos no hospital, não conseguimos comunicar o que ela estava sentindo”, destaca Barros sobre a importância da solução também para a área da saúde. O hoje CEO da empresa foi eleito o melhor empreendedor da 7ª edição do programa Lemonade, em 2017, e ganhou o Prêmio Empresa Inclusiva (na categoria microempreendedor individual) do Governo de Minas Gerais, em 2018.
Também criada para ajudar na comunicação, a paulistana Fofuuu é um aplicativo de estímulos da fala criado em 2015. A diretora criativa Tricia Araújo nasceu com lábio leporino e, até seus 30 anos de idade, passou 8 anos de terapia fonoaudiológica e por 15 cirurgias. Com base em suas dificuldades, a Fofuuu uniu práticas da neurociência e da fonoaudiologia em uma plataforma virtual gamificada.
A startup ganhou como melhor jogo educacional no pitch do Big Starter em 2015 e levou em 2016 o Prêmio Empreenda Saúde, do Hospital Sírio Libanês com a Fundação Everis. Em 2019, foi acelerada pelo programa Creative Startups, da Samsung, e recebeu investimentos da Finep e de outros investidores anjo, totalizando aportes de R$ 1,25 milhão. Disponível para testes gratuitos, app da Fofuuu também oferece planos com mensalidades de R$ 20 para pais e R$ 50 para profissionais com até cinco pacientes.
A partir do problema do outro
No caso do Matraquinha, a startup paulistana foi inspirada em Gabriel Yamuto, de 10 anos, que possui grau moderado de autismo e é filho dos fundadores da empresa, o casal Wagner e Grazyelle Yamuto.
Com mais de 55 mil downloads desde sua fundação, em 2018, o Matraquinha, que pode ser baixado gratuitamente e tem como base o Sistema de Comunicação por Troca de Figuras (PECS, na sigla em inglês), passou de abril a julho de 2019 pelo Startup Zone, programa de aceleração do Google for Startups Campus.
“Se não tivéssemos o Gabriel, não consigo dizer se teríamos criado o aplicativo”, diz Wagner, que é especialista em comércio eletrônico e se motiva nas interações com o filho para aprimorar a solução. O Matraquinha ainda não é a principal fonte de renda de nenhum dos sócios.
Também com base na dor do outro, a curitibana Veever foi criada em 2017 para propiciar uma nova vivência para cegos em ambientes urbanos. Por meio da geolocalização por beacons (minidispositivos acoplados a objetos de interesse), o app orienta por comandos de voz como chegar a locais específicos — como banheiros e pontos de ônibus.
Contratada em 2019 pelo evento Rock in Rio, a solução foi inspirada em um trabalho voluntário feito por dois anos no Instituto Paranaense de Cegos pelo cofundador João Pedro Novochadlo, que vivenciou de perto as dificuldades de pessoas cegas.
A Veever conta com cinco colaboradores e tem 18 pessoas com deficiência visual participando dos testes de usabilidade, experiência mediada pela professora Diele Santo, mestre em Artes Visuais com foco em Educação Inclusiva. Em 2020, a expectativa é que a empresa abra para investidores anjo e expanda suas formas de obtenção de receita para além dos eventos.
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