100 dias de governo Lula: o retorno da diplomacia presidencial; leia análise

Aposta no multilateralismo está expressa na intensa agenda internacional no início do mandato

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Por Rafael Cortez*
 

A expressão “radical” quando aplicada à análise do impacto das transições de governo nas políticas públicas quase sempre é vista com cautela. Na verdade, se espera que o mecanismo de moderação democrática acarrete mudanças graduais, o que aumentaria a aceitação da política pela comunidade de especialistas e conferiria estabilidade no tempo necessário para seu sucesso. Sob essa ótica, a política externa brasileira é exceção. As relações internacionais do Brasil ao longo do governo Bolsonaro entraram em choque com pilares canônicos da diplomacia brasileira, construídos no período após a Segunda Guerra Mundial, quando da formação do multilateralismo. Tal estranhamento produziu diversas manifestações conjuntas com fortes críticas à política externa de Bolsonaro. Nomes ligados ao PT e PSDB assinaram um texto conjunto de título: “A reconstrução da política externa brasileira”, em uma expressão do caráter de ruptura com as escolhas do último governo no campo da política externa.

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Os 100 dias do governo Lula confirmaram a expectativa de mudanças na política externa. A aposta no multilateralismo e na diplomacia presidencial está expressa na intensa agenda internacional no início do mandato. O desafio particular do novo mandato Lula é encontrar resultados concretos na cooperação internacional em um contexto de choque entre as principais potências. A política externa brasileira precisará encontrar um equilíbrio na disputa entre EUA e China, bem como no choque entre as agendas econômicas e geopolíticas.

Aos olhos da agenda econômica, a expectativa é de que a política externa do petista contribua para o País conseguir espaço entre as economias emergentes, em um cenário de obstáculos importantes para o crescimento. As lições do conflito entre Rússia e Ucrânia trouxeram uma janela de oportunidade para o País reconstruir a agenda negativa deixada pelo governo anterior. A questão ambiental deve assumir um duplo papel de soft power do Brasil junto à comunidade internacional e, em contrapartida, servir como instrumento para reposicionar o País nas cadeias globais, atraindo poupança externa para o crescimento sustentável.

O governo Bolsonaro deixou dois desafios principais para a reconstrução da política externa. No plano conceitual, o bolsonarismo interpretou a cena internacional, a partir do conceito de “globalismo”. Grosso modo, tal visão enxerga nas instituições multilaterais um espaço voltado para o enfraquecimento das tradições e soberania nacionais, servindo como instrumento de poder entre atores antagonistas. Tais organizações defenderiam a construção da “esquerda global”, o que alimentou o radicalismo doméstico com relação ao mainstream.

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No plano estratégico, a política externa do período entre 2019 e 2022 fez a opção pela aliança conservadora, com ênfase no relacionamento com o governo Trump, percebido como defensor do Ocidente contra o globalismo. A emergência do governo democrata nos EUA trouxe desconfiança bilateral entre os países. Além disso, as relações com a China foram conturbadas pela trava ideológica e restrições de natureza doméstica. A proximidade com a China era limitada pelo combate à esquerda, uma das teses que animou o bolsonarismo. A questão ideológica também limitou o papel do País como liderança regional, dado o ciclo eleitoral pró-esquerda na América Latina nos últimos anos.

Os 100 primeiros dias mostraram a disposição do presidente Lula em fazer da cena internacional mais um espaço de distanciamento do governo Bolsonaro. Curiosamente, a defesa da democracia serviu de motor para o País reverter o desgaste de imagem. A quase totalidade dos países parabenizou a vitória eleitoral do presidente Lula, mesmo sem manifestação presidencial. Não é exagero dizer que a comunidade internacional celebrou a alternância de poder no Brasil.

Ainda no mês de janeiro, Lula visitou o presidente argentino Alberto Fernandez em Buenos Aires Foto: Luis Robayo/AFP

O primeiro objetivo do presidente foi reconstruir o papel de liderança regional. A viagem à Argentina foi, talvez, a maior expressão da mudança na política externa e no peso da diplomacia presidencial na inserção do País nas Relações Internacionais. Mais do que buscar aproximação, o presidente fez quase uma campanha política por meio de promessas irrealistas, inclusive, com referências à possível moeda comum.

Os 100 dias também evidenciaram como a busca por protagonismo é o que irá alimentar a relação do Brasil com as grandes potências. O presidente Lula reiterou a disposição para mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia e procurou reforçar o não-alinhamento com o bloco ocidental, ainda que as votações do Brasil acompanhem o antagonismo à Rússia.

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O desafio é justamente proteger os interesses econômicos do País da confusão entre as agendas geopolítica e econômicas. Há risco de que a postura brasileira frente ao principal conflito geopolítico minimize as chances de sucesso na cooperação econômica, seja com os EUA ou com a China. O próprio acordo entre Mercosul e União Europeia no plano comercial pode ser negativamente afetado pelas escolhas em relação ao sistema de segurança.

O tema ambiental será o grande motivador do País na reconstrução do seu papel na comunidade internacional. Trata-se de uma ferramenta importante na atração de investimento, bem como no aprofundamento da cooperação comercial, dados os desafios da integração em tempos de pressões nacionalistas.

*Rafael Cortez é doutor em Ciência Política e sócio da Tendências Consultoria.

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