BRASÍLIA – O ano de 2025 será primordial para saber se a responsabilização pelos ataques golpistas do 8 de Janeiro vai alcançar os idealizadores e financiadores do esquema. A avaliação é da professora e pesquisadora da FGV Direito, Eloísa Machado, para quem a reação do Supremo Tribunal Federal (STF) ao episódio teve pontos positivos e outros preocupantes.
Se, para ela, o sistema de Justiça funcionou para esclarecer as investigações e chegar a condenações, por outro, há “muitas dúvidas sobre a adequação do STF no papel de corte criminal”. Ela menciona, por exemplo, a limitação do direito de defesa e os julgamentos em plenários virtuais como pontos que merecem reflexão.
Esta quarta-feira, 8, marca os dois anos do episódio que estremeceu a democracia brasileira. Eloísa coordena o grupo de pesquisa “Supremo em pauta”, que se debruça sobre os trabalhos na mais alta instância da Justiça brasileira, onde correm as ações contra os envolvidos nos ataques golpistas.
Em 8 de janeiro de 2023, Brasília foi palco de um ataque sem precedentes contra a democracia. Qual o balanço a senhora faz da resposta das instituições aos envolvidos nesse episódio?
É possível perceber que o sistema de justiça conseguiu se mover para dar uma resposta adequada, composta pela elucidação dos fatos e busca de responsabilização. Ministério Público, advocacia, defensorias, política e Judiciário foram atuantes nos casos. No âmbito do sistema de Justiça, a responsabilização caminhou. Já no âmbito do sistema político, forças que procuram minar a democracia, infelizmente, seguem com espaço.
A senhora analisou as decisões no âmbito das investigações sobre o 8 de Janeiro no Supremo Tribunal Federal. A que conclusões chegou?
Ao olharmos para todas as ações penais sobre 8 de janeiro até junho de 2024, pudemos perceber duas coisas interessantes. A primeira se refere ao tempo dessas ações, já que é possível estabelecer um cronograma, uma linha temporal muito clara em todas para as fases de investigação, denúncia, instrução, julgamento e recursos. Outra coisa interessante se refere aos tipos de decisões tomadas, mostrando que temas como incompetência do tribunal, impedimento de ministros e prisões foram apreciados não só pelo ministro relator, mas também pelos colegiados do tribunal, seja no plenário ou nas turmas.
Que elogios e críticas podemos tirar de todo esse processo, desde as investigações até as condenações?
O sistema de Justiça ter funcionado para dar um deslinde às investigações e ter concluído julgamentos é, sem dúvidas, um ponto positivo. Mas há questões importantes, que transcendem o episódio do 8 de Janeiro e que se referem ao próprio funcionamento do STF, que merecem uma reflexão mais aprofundada. Há muitas dúvidas sobre a adequação do STF no papel de corte criminal, há um debate relevante sobre direito de defesa e julgamentos em plenários virtuais, há uma limitação do direito ao recurso em casos julgados no STF. Não são temas específicos do 8 de Janeiro, mas que se recolocam quando um processo tão amplo, com mais de mil ações, chegam ao Tribunal.
A senhora vê o País hoje mais preparado para lidar com um eventual novo ataque desse tipo? A reação à tentativa de golpe foi suficientemente institucional ou se pautou demais na figura do ministro Alexandre de Moraes?
Eu vejo o País mais preparado hoje do que em 2022 e em 2023. De lá para cá, já houve a investigação sobre este tipo de crime, interpretação sobre os crimes de tentativa de golpe e de abolição violenta do estado democrático de direito e foram desvendadas as estratégias usadas na tentativa de golpe. Há um aprendizado que vem tanto da avaliação sobre que permitiu que essas articulações golpistas prosperassem dentro do governo, como da efetiva responsabilização promovida pelo sistema de Justiça. A reação à tentativa de golpe veio do governo federal, do sistema político, do Ministério Público, Judiciário e da sociedade civil. Moraes, como relator dos casos, assumiu um esperado protagonismo. Mas a resposta foi muito maior e institucional.
Por se tratar de um julgamento em última e única instância, a margem para recursos é limitada. Como a senhora vê essa situação?
O Supremo julga casos criminais em única e última instância nas hipóteses de foro por prerrogativa de função. Por isso, não há recurso, ao menos não nos termos considerados adequados, ou seja, um recurso que seja capaz de reavaliar matéria probatória e que seja acessível a todos os acusados. Essa falta de recurso afetou os condenados no Mensalão, na Lava Jato e no 8 de janeiro e em todas as demais ações penais que tramitaram no STF. Há uma interpretação que sustenta que a colegialidade compensa a falta de recurso, já que o réu seria julgado apenas uma vez, mas por vários juízes ao mesmo tempo.
Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) costumam se queixar da dimensão das penas, que variam entre 11 e 17 anos de prisão. Na sua opinião, são críticas razoáveis?
Tentativa de golpe e de abolição violenta do estado democrático de direito são crimes graves para os quais o legislador deu penas altas. No STF, a principal discordância se deu com a interpretação de que o crime de tentativa de golpe absorveria o crime de tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito, ou seja, de que um seria meio para o outro e, portanto, o réu responderia apenas pela prática de um deles. É um debate sobre interpretação da lei e não sobre abuso de poder. Apoiadores do ex-presidente Bolsonaro consideram que o 8 de janeiro foi uma “mera manifestação”, algo que está dissociado da realidade.
Até a prisão de generais, em especial a de Walter Braga Netto, havia uma preocupação em parte da sociedade civil de que somente os “peixes pequenos” da tentativa de golpe fossem punidos. A senhora vê hoje as autoridades se movendo na direção certa para responsabilizar os idealizadores e financiadores desse esquema?
Há outros inquéritos em andamento, voltados a investigar os idealizadores e financiadores da operação. Há outras frentes de investigação que olham para os fatos anteriores ao 8 de janeiro, que ajudaram a deflagrar o 8 de Janeiro. 2025 será um ano-chave para saber se os mentores e os que seriam beneficiados por esses crimes serão responsabilizados.
A senhora vê viabilidade na tentativa do Congresso de anistiar os golpistas?
Vejo com muita preocupação o PL da Anistia. É um projeto que, de certa forma, mantém viva a sanha golpista, confrontando o STF e tentado legitimar o 8 de Janeiro. O avanço das investigações, mostrando envolvimento do ex-presidente Jair Bolsonaro e da cúpula de seu governo e a gravidade e a violência do plano de golpe parecem ter desidratado o projeto. Considero um projeto que mostra a falta de compromisso do Congresso com a democracia brasileira.
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