O Supremo Tribunal Federal (STF) vai decidir se isenta os magistrados do Brasil de ações de danos morais por excesso de linguagem na Justiça comum. A Advocacia-Geral da União (AGU), em um pedido assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, requer à Corte máxima que eventuais injúrias cometidas por togados sejam julgadas somente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Atualmente, também é possível processar juízes e a União em ações na Justiça comum, para obter indenizações.
A ação da AGU foi movida em dezembro de 2020 e é inteiramente construída com base em sete processos que levaram à condenação do ministro Gilmar Mendes, do Supremo, em razão de supostas ofensas a membros do Ministério Público e da magistratura. No total, essas condenações somam R$ 179 mil em indenizações.
Essa multa será bancada pela União, que é naturalmente processada para arcar com danos morais cometidos por agentes públicos federais. “Não conheço detalhes dessas ações. Não tive participação nelas”, disse o ministro ao ser procurado pelo Estadão.
Segundo a AGU, a Lei Orgânica da Magistratura e a Constituição Federal abrem somente espaço para que magistrados e a União sejam alvo de pedidos de indenizações a título de danos morais na hipótese de erro judiciário e excesso de tempo na prisão. Na hipótese de incorrerem em linguagem considerada ofensiva, ficam sujeitos apenas a punições na esfera administrativa – no âmbito do CNJ –, que tem como pena mínima uma advertência e pena máxima a aposentadoria compulsória.
A AGU afirma que, “ao se permitir que um juiz de primeira instância julgue a existência de eventual excesso de linguagem em uma manifestação de um desembargador, por exemplo, consente-se com uma clara subversão da ordem hierárquica existente no sistema Judiciário”. Para o órgão, a possibilidade de processar magistrados na Justiça comum pode fomentar “retaliações” contra o Judiciário, por meio de “seguidas ações de responsabilização por dano moral”.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, se manifestou pela rejeição do pedido da AGU. Segundo Aras, o julgamento no CNJ não anula a possibilidade de haver uma ação de indenização por danos morais contra magistrados. “É bastante comum que um mesmo ato seja sancionado nas esferas penal, civil e administrativa. Isso se dá porque as instâncias são independentes.”
RELATOR
Sem entrar no mérito, o relator no STF, André Mendonça, decidiu no dia 22 de março, em liminar, suspender as sete ações de danos morais listadas pela AGU. Segundo o ministro, há “o risco de que decisões judiciais proferidas em possível desconformidade com o que vier a ser decidido” pela Corte “gerem, em desfavor do poder público, o pagamento de indenizações de difícil ou impossível reversão”. Enquanto o mérito não for analisado, ninguém será indenizado pelas falas de seu colega de tribunal.
Agregador de pesquisas
O primeiro dos casos citados pela AGU diz respeito a uma ação movida pelo juiz federal Marcos Josegrei, responsável pela deflagração da Operação Carne Fraca, que mirou suspeita de pagamento de propina a fiscais do Ministério da Agricultura em troca de alívio a frigoríficos em fiscalizações sobre a qualidade da carne. Gilmar citou o magistrado em julgamento de um habeas corpus referente à investigação.
Disse o ministro: “O delegado – o nome precisa ser dito, não se pode esquecer – é Maurício Moscardi. O procurador que assina a denúncia é Alexandre Melz Nardes. E o juiz, Marcos Josegrei. Têm responsabilidade sobre isso. É uma coisa chocante, chocante”. Prosseguiu: “Todos querem virar um (Sérgio) Moro (ex-juiz da Lava Jato), ganhar um minuto de celebridade. Não precisamos de corregedores, mas de psiquiatras. Porque é um problema sério. Quer dizer, os estrupícios se juntam e produzem uma tragédia. Produzem uma tragédia”.
A Justiça Federal no Paraná condenou a União a indenizar o juiz Josegrei em R$ 20 mil – a sentença foi mantida pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4).
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Em outro episódio citado pela AGU, cinco promotores do Ministério Público do Espírito Santo processaram Gilmar em razão de declaração feita durante o julgamento que proibiu a condução coercitiva para depoimento. “O chefe do Gaeco do Paraná também foi surpreendido numa blitz embriagado. Veja bem, parece que o alcoolismo é um problema do Ministério Público hoje. Vai se fazer o quê? Bafômetro nas provas?”, disse o ministro. Todos os cinco obtiveram decisões para receber indenizações de R$ 20 mil da União.
No último caso da ação da AGU, Gilmar foi condenado a indenizar em R$ 59 mil o ex-procurador Deltan Dallagnol. No processo, Dallagnol disse ter sofrido reiteradas ofensas. O ministro declarou, por exemplo, que a força-tarefa da Lava Jato era uma “organização criminosa”. Em outra ocasião, afirmou que os procuradores queriam lucrar com a investigação. E chamou os procuradores de “crápulas”, “cretinos”, “espúrios” e “voluptuosos”.
Ainda não há previsão para o julgamento do Supremo.
Ao se permitir que um juiz de 1.ª instância julgue eventual excesso de um desembargador, consente-se com clara subversão da ordem hierárquica.”
Advocacia-Geral da União, em ação no Supremo
Jurista busca na Justiça condenação de ministro, não da União
Em ação que não está listada no processo da AGU, o jurista Modesto Carvalhosa busca convencer a Justiça a condenar Gilmar Mendes, não a União, a indenizá-lo por danos morais. Em uma entrevista, o ministro afirmou que um acordo da Lava Jato para criar um fundo bilionário com dinheiro de uma indenização imposta à Petrobras beneficiaria Carvalhosa.
Em 1.ª instância, a ação foi extinta pela juíza da 31.ª Vara Cível de SP, Mariana Neves Salinas, que acolheu a tese da defesa. Para ela, “as ocorrências estão atreladas à função jurisdicional exercida no cargo de ministro do Supremo” e, por isso, a União deve responder pela ação. Ao recorrer, a defesa do jurista disse que nem todas as ofensas foram feitas em sessões da Corte. “Seu cargo não o torna civilmente inimputável, às custas da União”, disse o advogado Martin della Valle. Questionado, Gilmar não se manifestou.
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