Premiado, inédito e irregular. Segundo denúncia feita pelo Ministério Público de São Paulo à Justiça, o túnel construído pelo Shopping Cidade Jardim para interligar o luxuoso centro de compras a um novo estacionamento, via esteiras rolantes circundadas por 44 metros de painéis de LED, está em desacordo com a legislação. O que inclui até mesmo o prédio erguido na esquina da Rua Joapé com a Marginal do Pinheiros para acomodar 800 carros de clientes.
Em ação civil pública apresentada à Justiça em 20 de julho, a Promotoria de Habitação e Urbanismo afirma que todo o processo de licenciamento e concessão de alvarás do estacionamento Deck Park, originalmente apresentado ao Município como um novo espaço de lojas, assim como do túnel para pedestres, está viciado e, por isso, deve ser cancelado e refeito.
A HSF Incorporações Ltda, JHSF Malls S.A. e CFN Empreendimentos e Incorporações Imobiliárias Ltda, por sua vez, dizem que o centro comercial foi aprovado por todas as autoridades competentes e tem as licenças e alvarás de funcionamento. As três empresas foram denunciadas pelo promotor Marcus Vinícius Monteiro dos Santos, assim como o Município de São Paulo.
Santos pede o fechamento imediato de ambos os espaços, a retomada dos estudos de impacto ambiental e viário, o cumprimento de medidas mitigadoras de trânsito, o cancelamento dos alvarás e, ao fim do processo, a condenação das empresas por danos morais difusos e danos sociais em multa ainda não calculada.
A Justiça irá decidir quem está com a razão. Se o pedido de liminar for considerado válido, tanto o estacionamento como o túnel deverão ser fechados ao público mediante multas de mais de R$ 100 mil por dia em caso de descumprimento. Não é a primeira vez que as obras são questionadas.
Experiência sensorial
O túnel é uma atração turística aos visitantes do shopping. Quem passa por ele vive uma experiência imersiva de quase dois minutos, com música ambiente, imagens em alta resolução e aromas diversos. O projeto venceu, em 2022, o Prêmio Popai Brasil 2022, considerado o “Oscar do Varejo” por reconhecer os melhores materiais, ações e projetos de merchandising do País.
A reportagem do Estadão esteve em ambos os espaços nesta segunda, 7. O prédio construído para ser um centro de compras funciona, até o momento, somente como um estacionamento e o túnel é acessado apenas por meio dele, ou seja, sem abertura direta para a rua e, consequentemente, para pedestres. Ou seja, o túnel só é acessível para quem para com o carro no estacionamento.
A JHSF alega que o “edifício em questão é um centro comercial em desenvolvimento”. Em nota, a empresa afirma que “atualmente há espaços locáveis em negociações com lojistas interessados. Além disso, como previsto em projeto e é praxe em todo centro comercial, o empreendimento possui vagas de estacionamento.”
Em posicionamento apresentado à Promotoria e enviado à reportagem, a JHSF argumenta ainda que a conexão para pedestres entre o empreendimento e o shopping está prevista há muitos anos, conforme projeto de reconfiguração viária da Marginal Pinheiros.
Em processo que reúne 1.647 páginas até aqui, a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital sustenta que, apesar de as empresas denunciadas terem apresentado pedido de alvará para novo centro de compras, a intenção, desde o início, era a de erguer um estacionamento, o Deck Park, e o túnel.
Desde o recebimento da ação civil pela Justiça, o caso já teve duas decisões: uma favorável ao MP e outra contrária. A liminar chegou a ser concedida pelo juiz Antonio Augusto Galvão de Franco, da 4ª Vara de Fazenda Pública, no dia seguinte à denúncia, ou seja, em 21 de julho. Mas o mesmo magistrado suspendeu os efeitos de sua decisão seis dias depois para respeitar, segundo ele, o “direito ao contraditório”.
Nesta segunda decisão, Franco deu prazo de cinco dias para que a Promotoria de Habitação se manifestasse a respeito do “pedido de reconsideração” formulado pela JHSF Malls S.A. e demais empresas citadas na ação. O Estadão apurou que o promotor Marcus Vinícius Monteiro dos Santos reiterou o pedido de liminar em novo despacho feito nesta segunda, 7, à Justiça.
Deck Park
Segundo parecer do MP realizado pouco mais de um mês após a inauguração do estacionamento, em outubro de 2021, pedestres já faziam o trajeto entre a nova edificação e o shopping por meio de um túnel com 145 metros. “Ocorre que nos projetos apresentados pelas rés para análise do Município de São Paulo não existia a previsão da construção do túnel no local. A inclusão desta ligação em projeto deixaria evidente a verdadeira intenção das empreendedoras de utilizar a nova edificação como estacionamento do Shopping Cidade Jardim, inviabilizando sua estratégia de induzir em erro o poder público.”
A estratégia citada teria sido a apresentação, em 2019, de um pedido de alvará para centro de compras, com três andares e três subsolos. O empreendimento, denominado “Santiago 1B”, previa o total de 119 vagas de automóveis, número inferior a 120, quantidade que enquadraria o empreendimento como Polo Gerador de Tráfego e, portanto, exigiria ações mitigadoras de trânsito.
Na ação, a promotoria relata que dois anos depois, em outubro de 2021, a JHSF Incorporações Ltda obteve novo alvará a partir de um projeto modificativo. O documento em questão ainda tratava o estacionamento atual como centro de compras, mas com 709 vagas e não mais 119, tornando-o, portanto, polo gerador.
Já em janeiro deste ano, com a investigação em curso, o Ministério Público informa que a mesma empresa encaminhou documento à Promotoria “querendo fazer crer que o estacionamento estava sendo utilizado também como centro de compras” - fato que foi classificado como “simulação” pela Subprefeitura do Butantã, que, instada pelo Ministério Público, vistoriou o local e confirmou que trata-se de um prédio de estacionamento, sem lojas.
Para o Ministério Público, “a construção do túnel se deu de forma absolutamente clandestina e ilegal. Tanto assim que o pedido formulado perante a municipalidade para expedição do termo de permissão de uso se deu apenas após a conclusão daquela obra, precisamente em 16/02/22″, sustenta o Ministério Público.
“Além de não estar previsto em projeto, não consta informação quanto à regularidade da construção do túnel sob área pública municipal. Em pesquisa junto à Câmara Municipal de São Paulo, foram encontrados 30 decretos que tratam de permissão de uso de subsolo. Nenhum dos dispositivos legais trata da permissão de uso, a título precário, gratuito ou oneroso, de trecho de subsolo da Rua Joapé.”
A Prefeitura, que é ré no caso, concedeu as licenças para o estacionamento e o túnel, que teve processo de aprovação apartado. Em nota, a gestão Ricardo Nunes (MDB) informou, por meio da Procuradoria Geral do Município, que não foi citada ainda na ação. " Quando for, apresentará todas as informações necessárias.” O Estadão apurou, porém, que a Justiça informou a PGM sobre a liminar suspensa em 27 de julho, via e-mail.
Já a JHSF informou que o centro comercial foi aprovado por todas as autoridades competentes e tem as licenças e alvarás de funcionamento. Disse ainda que o edifício tem cerca de 1.000 m2 de área locável.
“Em referência à passagem que liga os dois centros comerciais, ela está prevista e fez parte de exigências das autoridades no Projeto Funcional de Geometria de nova circulação para Marginal Pinheiros - Reconfiguração Viária Marginal Pinheiros aprovado há mais de dez anos junto às autoridades competentes”, completou.
No pedido de liminar, que será novamente analisado, a Promotoria de Habitação sustenta que a alteração de uso e da natureza do empreendimento (de centro de compras para um estacionamento) demandava, por parte das rés, a apresentação de um novo projeto.
Da mesma forma, destaca que, em função de tal irregularidade, a Prefeitura agiu de “forma ilegal” ao expedir o Certificado de Conclusão n° 2022-80664-00, 23/05/2022. “Esse ato administrativo desatendeu o disposto no art. 33, § 3°, do Código de Obras, que define que para a emissão do mencionado certificado são aceitas “pequenas alterações” em relação ao processo aprovado. E isso não ocorreu no caso em tela, já que as alterações foram de grandes e impactantes proporções.”/ COM TIAGO QUEIROZ
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