O presidente Jair Bolsonaro pode responder criminalmente quando deixa o Palácio do Planalto para ir a aglomerações de pessoas, segundo juristas. No último domingo, ele discursou em protesto que pedia intervenção militar, mas não foi o único caso.
Em 31 de março, depois que o presidente deu um passeio pelo comércio popular em Brasília, o Estado ouviu especialistas sobre a questão. Apesar de não haver um consenso entre os juristas, o descumprimento de medidas recomendadas pelo próprio ministério da Saúde pode fazer com que o mandatário seja responsabilizado pelo crime previsto no artigo 268 do Código Penal ou pela Lei de Responsabilidade.
A atitude do presidente foi na contramão das orientações de distanciamento dadas pelo seu próprio Ministério da Saúde. Nove partidos, em sua maioria siglas de esquerda, emitiram uma nota conjunta em que afirmam estudar medidas judiciais cabíveis contra a atitude de Bolsonaro.
Para o criminalista Conrado Gontijo, doutor em direito penal e econômico pela Universidade de São Paulo (Usp), a ida de Bolsonaro às ruas de Brasília corresponde ao crime previsto pelo artigo 268 do Código Penal, que fala em infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. “É exatamente o que o presidente tem feito. Existem determinações oriundas do ministério da Saúde que ele claramente descumpre quando se coloca ao encontro do público.”
Neste caso, o presidente estaria praticando um crime comum, e não de responsabilização com base no procedimento de impeachment, diz Gontijo. “Caberia ao Ministério Público Federal (MPF) ajuizar uma denúncia em face dele e, com isso, o processo ser submetido à apreciação do Senado e do Supremo Tribunal Federal, podendo o primeiro suspender o exercício da função do presidente”, explica.
Como não há, ainda, determinação do poder público para eventual lockdown, ou seja, paralisação total com proibição, inclusive, de sair às ruas, não caberia enquadrar Bolsonaro no crime previsto pelo artigo 268, argumenta o advogado e professor de direito Welington Arruda. “Não me parece que ele tenha infringido ‘determinação legal’. Se houvesse um decreto proibindo a saída das pessoas ou determinando que fiquem reclusos em suas casas suspeitos de coronavírus ou quem teve contato com alguém infectado, aí sim o presidente se encaixaria.”
O passeio de Bolsonaro pelo comércio em Brasília pode ser enquadrado, na verdade, na lei de Responsabilidade, de acordo com Arruda. “Quando o presidente afronta e incentiva que as pessoas cometam a desobediência civil em detrimento das quarentenas determinadas pelos Estados, inegavelmente está atentando contra os Poderes Constitucionais destes Estados, que estão trabalhando para minimizar os efeitos da pandemia.”
Arruda cita, ainda, que o mandatário colocou em risco a segurança interna do País e afrontou a probidade da Administração - neste caso, as recomendações dadas pelo ministério da Saúde. “Com isso, ele infringe o artigo 37 da Constituição Federal, que determina ao agente público, político ou não, que seus atos sigam obediência à legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência.”
O professor da FGV direito Carlos Ari Sundfeld afirma existir fundamento na lei que regula o impeachment para se aplicar atos de um presidente que colocam em risco programa governamental com repercussão sobre a saúde. “É uma infração jurídica julgada pelo poder legislativo. As consequências são graves do que ele está fazendo e a resposta adequada seria enquadrar no crime de responsabilidade, o que depende de um julgamento político.”
Sob o argumento de não haver uma proibição de sair às ruas, mas uma recomendação, a conselheira do Instituto dos Advogados de Săo Paulo (IASP) Marina Coelho Araújo diz que a saída de Bolsonaro no domingo não viola o artigo 268. Em relação ao crime de responsabilidade, ela afirma ser necessário levar em consideração que a pandemia é um acontecimento novo na comunidade científica mundial. “Não existe um protocolo certo. E basear uma ausência de probidade em cima desses protocolos ainda incipientes pode ser perigoso.”
Incitação ao crime
Poucos estabelecimentos estão abertos em Brasília, pois a cidade cumpre decreto do governador, Ibaneis Rocha (MDB), que permite o funcionamento apenas de serviços considerados essenciais, como farmácias.
A professora de direito do Mackenzie Patricia Vanzolini explica que a violação da quarentena, medida geral determinada pelo administrador público, como um prefeito ou governo, configura crime do artigo 268 do Código Penal. Se Bolsonaro, em algum momento de sua caminhada, incitou o público a abrir comércios não-essenciais, ele praticou crime de incitação ao crime, diz Vanzolini.
Ela observa que o descumprimento do isolamento, medida individual que precisa ser indicada por um médico ou agente da vigilância sanitária em casos de confirmação ou suspeita de coronavírus, também configura o artigo 268.
“Se houve uma determinação médica de ficar em isolamento após Bolsonaro ter tido contato com o general Heleno, que testou positivo para a Covid-19, é crime. Assim como ocorreu no dia 15 de março.”
O professor de direito constitucional Alessandro Soares afirma que se Bolsonaro sabia que estava contaminado e mesmo assim saiu em público, corre o risco de ser enquadrado no crime de epidemia. "Se ele for um ponto de referência ou causa da epidemia, pode ser enquadrado no artigo 267 do Código Penal. Mas é preciso ter essa prova, que pode ser obtida por meio de processo judicial."
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