Ações populistas reforçam cenário de ameaça à liberdade de imprensa

Falta de transparência, notícias falsas e negacionismo estão entre os fenômenos que põem em risco o direito da sociedade à informação

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Foto do author Marcelo Godoy
Por Marcelo Godoy e Daniel Bramatti
Atualização:

A liberdade de imprensa, um dos pilares das democracias liberais, sofre investidas no mundo e no Brasil na mesma medida em que governantes populistas de direita e de esquerda procuram corroer o estado democrático de direito. No diagnóstico de analistas ouvidos pelo Estadão, na data de hoje, em que se comemora o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa, a reflexão que se impõe é de como o direito à informação é abalado em um contexto de notícias falsas e distorcidas, falta de transparência e negacionismo.

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A avaliação é de que a censura estatal das ditaduras cedeu lugar à opacidade dos governos iliberais. Ela desafia as democracias na mesma medida que ações buscam sufocar financeiramente empresas jornalísticas e processos e ofensas tentam intimidar jornalistas. Este quadro se completa com dois fenômenos mais recentes: o negacionismo à ciência e as redes de desinformação.

Um consórcio de veículos formado por Estadão, Rádio Eldorado, TV Globo, GloboNews, G1, O Globo, Extra, Valor Econômico, Folha de S.Paulo, UOL e CBN se uniu para celebrar a data em uma ação para reforçar a importância do acesso à informação de qualidade pela sociedade e defender a integridade dos jornalistas profissionais que sofrem, cada vez mais, com ataques e ameaças no exercício da profissão.

“No Brasil e em sociedades altamente polarizadas, o grande desafio é mostrar que a liberdade de imprensa é, antes de tudo, a liberdade de a sociedade tomar conhecimento do que fazem e como agem governos, poderes, organizações, pessoas públicas, partidos e assim por diante. O papel da imprensa não é agradar a todos, mas muitas vezes denunciar, investigar e, sobretudo, conferir a veracidade do que se divulga nas redes sociais”, observou o presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Marcelo Rech.

Na visão do professor da Escola de Comunicação e Artes da USP Eugênio Bucci, os ataques à liberdade de imprensa são feitos atualmente de tal forma que a sociedade desaprenda a importância desse direito, a sua função social e da necessária atividade de fiscalização do poder. “Isso mina não apenas o estado de direito, mas também a cultura democrática na sociedade”, disse. “É uma característica dessas autocracias o golpe em gerúndio, que vai acontecendo. A Hungria é um caso particular, assim como a Turquia e a Rússia. Mas a gente observa em todos esses lugares a corrosão por dentro, a cupinização. É como se o estado democrático de direito fosse exaurido por fadiga e esvaziamento”, afirmou o jornalista.

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Para o professor de Filosofia e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Renato Janine Ribeiro, a verdadeira vítima desses ataques é a cidadania. “A liberdade de imprensa é uma liberdade cujo titular não é o jornalista ou a empresa, mas a cidadania, o coletivo. O jornalista e o empresário são uma espécie de fiel depositário da liberdade de expressão que deve exercê-la para o bem comum. Ele tem a obrigação da verdade e deve contribuir para o melhor debate público.”

Com o AI-5, em 1968, e censores instalados na redação, ‘Estadão’ passou a publicar versos de Camões Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo

Mordaças

A história da liberdade de imprensa no Brasil é também a da forma como os governantes tentaram controlá-la. Assim como outros veículos, O Estado de S. Paulo foi alvo de governantes durante toda a República. A Primeira Guerra trouxe ao País o estado de sítio e ao Estadão, uma mordaça que durou de 24 de novembro de 1917 a 28 de fevereiro de 1918. A direção do jornal resistiu à ação da censura, controlada pelo governador de São Paulo, Altino Arantes, do Partido Republicano Paulista (PRP), deixando em branco o espaço de artigos inteiros ou trechos amputados pelo gabinete de polícia. Ao todo, a ação autoritária golpeou 22 vezes o jornal.

Com o Estado Novo, o Estadão foi novamente alvo. Soldados da ditadura de Getúlio Vargas invadiram a sede do jornal em 25 de março de 1940 sob a falsa acusação de que a direção participava de uma conspiração. Armas foram colocadas no forro do prédio pela polícia para forjar provas. Os proprietários do jornal foram acusados de armazenar metralhadoras para derrubar o governo. Francisco Mesquita foi preso e levado para o Rio, onde o detiveram por 40 dias. Sem provas, ele foi solto, mas impedido de reassumir suas funções no jornal, que passou a ser gerido pela ditadura. O ditador confiscou o jornal e o pôs a serviço de sua propaganda, indicando um interventor para comandá-lo.

O jornal voltou às mãos da família Mesquita em 6 de dezembro de 1945. Ele seria novamente alvo em 13 de dezembro de 1968, quando a edição que trazia o editorial As instituições em frangalhos, escrito por Julio de Mesquita Filho, foi impedida de circular pela polícia política. Com o Ato Institucional 5 (AI-5), censores se instalaram na redação, que passou a publicar versos de Camões, enquanto o Jornal da Tarde, também editado pelo grupo, publicava receitas de bolo no espaço dos textos cortados pelos censores.

Documentário aborda a censura ao ‘Estadão’ na ditadura militar; assista

Após a Constituição de 1988 a liberdade de imprensa voltou a ser ameaçada no País por decisões judiciais, como a censura imposta ao Estadão pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, no fim de julho de 2009, que proibiu o jornal de publicar notícias sobre a Operação Boi Barrica da Polícia Federal – que apurou o envolvimento de Fernando Sarney, filho do então presidente do Senado, José Sarney (MDB-AP), em esquema de contratação de parentes e afilhados políticos do clã por meio de atos secretos. A mordaça durou 3.327 dias.

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Além de decisões judiciais, a liberdade de imprensa se viu ameaçada por atos e investidas de governos, desde as tentativas de controle da mídia surgidas no governo de Luiz Inácio Lula da Silva às ameaças aos anunciantes dos jornais feitas por Jair Bolsonaro.

2 perguntas para Marcelo Rech, presidente, presidente da ANJ

Marcelo Rech, presidente da ANJ Foto: Rogerio Lorenzoni

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A censura pode ser evidente, com a proibição direta da circulação de determinados conteúdos ou veículos, ou menos visível, mas com resultados similares. No atual contexto brasileiro, quais são os grandes desafios para a liberdade de imprensa?

No Brasil e em sociedades altamente polarizadas, o grande desafio é mostrar que a liberdade de imprensa é, antes de tudo, a liberdade de a sociedade tomar conhecimento do que fazem e como agem governos, poderes, organizações, pessoas públicas, partidos e assim por diante. O papel da imprensa não é agradar a todos, mas muitas vezes denunciar, investigar e, sobretudo, conferir a veracidade do que se divulga nas redes sociais. Essa função de certificadora da realidade confronta muitas vezes interesses políticos e, por isso, a imprensa é tão atacada em sociedades polarizadas.

Considera que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) está sendo indevidamente usada para restringir o alcance da Lei de Acesso à Informação (LAI)?

O alcance da LAI está diretamente ligado à determinação de governantes em assumir uma postura de transparência ou não sobre seus atos e de seus subordinados. Independentemente da LGPD, governos que dificultam a transparência querem isso mesmo: esconder eventuais nódoas.

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