Análise: Bolsonaro implode até mesmo as relações com aliados

Em espécie de antipresidencialismo, governa-se pelo caos e pelo conflito indecoroso, mas é preciso enxergar o que há por baixo da cortina de fumaça

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Por Sérgio Veloso
Atualização:

A declaração do presidente Jair Bolsonaro em referência ao pai de Michelle Bachelet, torturado e morto pela ditadura de Augusto Pinochet no Chile nos anos 70, é um indicativo de que Bolsonaro não tem intenção de prezar nem mesmo as relações de aliança e confiança do governo. Bolsonaro e Sebastián Piñera vêm construindo uma relação de aliança desde o início deste governo. Piñera, recentemente, veio ao Brasil para ser apaziguador e ponte entre o G-7 – e principalmente o presidente francês Emmanuel Macron – e o Brasil, na crise das queimadas na Amazônia.

No entanto, Bolsonaro parece seguir um roteiro semelhante ao de Donald Trump, e se esforçar para implodir até mesmo as relações com seus aliados. É uma espécie de antipresidencialismo, que governa pelo caos, pelo conflito aberto e indecoroso. Ele precisa manter o conflito, e faz isso com as declarações – além de outras várias formas. 

O presidente Jair Bolsonaro ao lado de Sebastián Piñera, do Chile Foto: CLAUDIO REYES / AFP

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O Chile, por sua vez, deu indicações bastante claras de que a relação com o Brasil é estratégica. Há um rol de interesses na área de segurança, agricultura, e especialmente a construção do corredor bi-oceânico, que ligaria o mercado chileno ao brasileiro e facilitaria o escoamento de produtos para ambos mercados, brasileiro e chileno. 

Essas declarações, por piores que sejam, podem ser interpretadas como cortina de fumaça. É óbvio que o presidente do Chile tem de responder. É uma questão que toca a sua história, e o coloca em uma situação delicada com seu próprio país e seu próprio eleitorado. E é óbvio que não é bom, mas é ruído. Não é novidade para Piñera – nem para nenhum chefe de Estado do mundo hoje – que Bolsonaro diz esse tipo de coisa. 

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Ao “bater” em Bachelet, Bolsonaro mira nos direitos humanos, nessa agenda que ele chama de “comunista” e na própria Organização das Nações Unidas (ONU), onde a ex-presidente chilena é alta comissária para Direitos Humanos. As instâncias internacionais são bombardeadas para que ele se reafirme, e, assim, jogue para sua plateia.

Já começamos a ver que toda essa verborragia de Bolsonaro tem impactos concretos. Um exemplo é a questão da Amazônia, com o cancelamento das encomendas de couro brasileiro por marcas globais. O impacto veio muito mais rapidamente. Na questão do Chile, precisamos ver até que ponto o governo Piñera está disposto a desfazer essa aliança, que tem sido construída lenta e constantemente, por conta da retórica de Bolsonaro. Ele está disposto a fechar os canais que essa relação pode abrir para seu país – e por conta de um presidente que sabidamente se comporta dessa forma?

No fim das contas, talvez o elemento mais tático dessa história toda seja justamente o ruído que essas declarações provocam. A intenção é manter a sociedade discutindo sua declaração. Se é metódico, não sabemos, mas o jogo de cena parece ser a principal estratégia política de Bolsonaro. Temos de falar menos dele, e entender as agendas de fato que estão correndo por baixo das “nuvens de fumaça” que o presidente cria o tempo inteiro, dominando e intoxicando o debate público. 

* Professor de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

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