Um estrondo diferente no céu assustou Aragarças, uma cidadela de garimpeiros e pescadores na beira do Rio Araguaia, em Goiás. Há 60 anos, na manhã de 3 de dezembro de 1959, Acendina de Souza Santos, hoje com 88 anos, correu para fora de casa. Ela viu a aterrissagem de um Constellation, um longo avião de passageiros no formato de um golfinho, na pista de pouso do aeródromo municipal, onde antes só tinham descido os pequenos Douglas C-47, da rota do Correio Aéreo Nacional.
O “bichão” da extinta Panair decolou do Aeroporto do Galeão, no Rio, com destino a Belém, com 38 passageiros e oito tripulantes. Na altura de Barreiras, na Bahia, um militar da Aeronáutica mandou o piloto desviar para a cidade goiana. Outros quatro aviões de menor porte também tomados pelos revoltosos chegaram a Aragarças. Era o primeiro sequestro de avião no Brasil e uma conspiração contra o governo Juscelino Kubitschek iniciada ainda no dia 2, pelos tenentes-coronéis da Aeronáutica Haroldo Coimbra Veloso e João Paulo Moreira Burnier.
Os passageiros foram levados para o Grande Hotel, o único do município, e os revoltosos montaram ali mesmo, na pista de pouso, a resistência. Tonéis de combustíveis e galhos foram espalhados na pista para impedir a descida de aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) enviados pelo governo. O Revoltoso do Veloso, como o movimento ficou conhecido na cidade, durou pouco. Líderes do movimento não esperaram a reação e seguiram no Constellation para Buenos Aires. No terceiro dia da revolta, paraquedistas do Exército desceram no aeródromo e estraçalharam a cauda de um dos pequenos aviões dos revoltosos que retornavam de um voo de inspeção em Mato Grosso. Os tonéis de combustíveis foram bombardeados.
Jacareacanga. O levante começou a ser articulado em 1957, quando Juscelino atraía a atenção do País para o canteiro de obras de Brasília. Os conspiradores eram veteranos de outra revolta, a de Jacareacanga, em 1956. Foram anistiados por Juscelino, mas tentaram outra vez derrubar o presidente. Veloso e Burnier eram da geração da Aeronáutica que se deslumbrou com a política e não parou de sonhar com golpes a partir da República do Galeão, uma sindicância para investigar a morte do major Rubens Vaz, em 1954, que acabou em crise política e no suicídio do presidente Getúlio Vargas.
Em Aragarças, o objetivo dos militares da FAB era iniciar um movimento “revolucionário” para afastar do poder “corruptos” e pessoas ligadas ao “comunismo internacional”. Os ataques da reação aos revoltosos marcaram a memória de Aragarças, então uma cidade de 2,5 mil moradores. Sentada numa cadeira de balanço na frente de sua casa, Acendina relatou que a fumaça das explosões ficou semanas no céu. “Dizem que não morreu gente, mas cheiro de carne assada tinha muito. Eles não falam”, disse ela. “Trancaram tudo, interromperam a comunicação de telegrama na cidade. Eu fui muitas vezes num tenente amigo da gente para dizer: ‘Tenente, pelo amor de Deus! Fala o que está acontecendo’. Eu queria deixar meus filhos vivos.”
Fogo. O marido de Acendina era funcionário da Fundação Brasil Central (FBC), órgão público criado para estimular a colonização de áreas remotas do País. Uma cena que marcou a moradora foi a de um homem - que trabalhava junto com seu marido na FBC - despencando de um avião em movimento no momento em que ele tentava pousar no aeroporto em chamas. Ela contou que, quando os aviões pequenos tomados pelos revoltosos estavam prestes a pousar, forças do governo atearam fogo em galões de combustível na pista. “Um senhor moreno caiu do avião. Ele estava operado, os pontos abriram. Entraram lá em casa, cheio de sangue, pedindo socorro. O que estava com a ferida aberta era funcionário da fundação, um morenão alto”, recordou. “A gente deu água para ele limpar o sangue.”
O pesquisador Claudemiro Souza Luz, de 79 anos, estudava no curso de radiotelegrafista da FBC, em Aragarças, quando o Revoltoso do Veloso foi deflagrado. Segundo ele, a escolha da cidade na divisa com Mato Grosso como QG do movimento se deu porque o líder era conhecedor da região. “Haroldo Veloso era piloto do Correio Aéreo Nacional e fazia muitas escaladas em Aragarças”, disse. “Ele tinha uma relação íntima com os moradores, participava dos nossos carnavais, que eram os melhores do Araguaia”, afirmou o pesquisador, autor do livro Cidade de Aragarças, cinquenta anos da Revolta Veloso, de 2009. “A revolta durou pouco tempo, mas o suficiente para colocar a cidade no Brasil e no mundo.”
Destinos. Os líderes da revolta de Aragarças ainda estiveram juntos no apoio ao movimento golpista que, em 1964, derrubou o governo João Goulart. Ao longo da ditadura, Haroldo Coimbra Veloso e João Paulo Moreira Burnier, porém, seguiram rumos diferentes. Em 1966, Veloso se candidatou a deputado federal pela Arena do Pará. Dois anos depois, organizou uma marcha de defesa do então prefeito de Santarém, Elias Pinto, do oposicionista MDB, que sofria processo de cassação pelo regime militar. Durante a marcha, um policial atirou na virilha de Veloso. Ao saber que o velho companheiro agonizava na cidade remota da margem do Rio Amazonas, Burnier, já brigadeiro, deslocou um avião do Rio até Santarém para socorrer o amigo. Veloso, no entanto, morreu semanas depois, aos 49 anos, num hospital, como herói da resistência à ditadura que sua geração ajudou a construir ainda no tempo de Getúlio.
Ainda em 1968, Burnier atuava na seção de informações da Aeronáutica quando se envolveu no caso Para-Sar, uma operação que, segundo o capitão-aviador Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco, tinha o objetivo de eliminar adversários da ditadura. Em 1971, estava num grupo da Aeronáutica que foi afastado em meio às investigações sobre a tortura e morte do estudante Stuart Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel, na Base Aérea do Galeão. Burnier morreu em 2000, aos 80 anos. Ele personalizava um dos tantos ciclos de autoritarismo e conspiração da história brasileira.
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