No Brasil, a rede hospitalar já dá sinais de colapso. Eu sei disso, o leitor sabe disso, e, sobretudo, sabem disso os milhares que estão nas filas aguardando por leitos. A imprensa internacional sabe, as organizações internacionais também; todo o mundo sabe, certo? Errado.
O bolsonarismo não sabe, ou prefere ignorar. O chefe supremo conduziu lideranças empresariais para pressionar o Judiciário contra o distanciamento social. Seu ministro da economia defende uma medida radical: colocar a economia no respirador e as pessoas de volta à rua, sem o auxílio emergencial que seu ministério não consegue pagar. O ministro da educação anunciou o ENEM das escolas privadas e o da Saúde, bestializado, se empenha em garantir que os portadores de planos de saúde privados tenham seus leitos garantidos na rede privada, enterrando ao pré-nascer a necessária discussão sobre a adoção de uma fila única. Se havia qualquer suspeita, acabam de ser desfeitas. Bolsonaro é um idiocrata.
Idiocracia é o governo dos idiotes. Um regime político que não reconhece nada além do idios, ou seja, daquilo que é particular, próprio, ou peculiar. A idiocracia destrói as instâncias públicas de deliberação, de provisão de bens públicos (como a saúde) ou de reflexão e crítica (como a imprensa ou a academia). Para o idiocrata, do Estado, deve restar apenas o aparato repressivo. O termo nomeou uma comédia distópica que descrevia um futuro habitado por corporações e indivíduos prisioneiros de si mesmos e foi associado à eleição de Donald Trump. No caso de Bolsonaro, contudo, idiocracia parece ser um documentário: a história de um regime político que pretende transformar os brasileiros, ou o demos (a que se refere insistentemente o chanceler do bolsonarismo), em idiotes.
A idiocracia é um movimento de reforma radical da sociedade na direção da desintegração dos mecanismos de solidariedade e atomização dos agentes sociais. Para instalá-la, o bolsonarismo mobiliza instrumentos e garantias das democracias liberais, particularmente a liberdade de expressão. Para o idiotes, a liberdade de expressão é condição para a apologia de crimes (como a tortura), para o negacionismo (mudança climática ou pandemia) ou simplesmente para a expressão do absurdo (do qual são exemplos a recente e já inesquecível entrevista da atual Secretária de Cultura, ou a série de intervenções obscurantistas do chanceler). Mais importante, a liberdade de expressão franqueia a fabricação do antagonismo e a promoção do ódio. O bolsonarismo é antes de mais nada uma fábrica de antagonismos que terminam por multiplicar facções e tribos, promovendo, enfim, a idiotia.
Como a idiocracia, poderia responder à pandemia? Colocando o vírus a serviço de seus objetivos: a destruição da esfera pública e a desintegração da sociedade. Para tanto, a resposta idiocrática adquiriu no Brasil, cinco dimensões: 1) proteger o sistema financeiro e as grandes empresas; 2) desacreditar as instituições públicas, em particular as instituições científicas, o SUS e a imprensa; 3) politizar e ideologizar os instrumentos de mitigação (quarentenários ou farmacêuticos) com vistas à fratura da sociedade em torno de posições irreconciliáveis; 4) fabricar inimigos no cenário doméstico (jornalistas, acadêmicos, governadores, prefeitos, parlamentares ou magistrados); 5) promover o caos social e consequentes oportunidades de ruptura do estado de direito.
Bolsonaristas não reconhecem a necessidade do Estado e quando as evidências demonstram essa necessidade, não sabem como operá-lo. A expressão desse binômio, pode ser encontrada no combate às medidas de distanciamento social, na ineficácia (intencional ou por incompetência) das medidas de proteção social, na indiferença em relação à manutenção de postos de trabalho e apoio à precarização dos poucos empregos existentes e na incapacidade de coordenar e ampliar as ações de expansão da capacidade hospitalar. Os resultados já são visíveis e seguem a lógica das desigualdades brasileiras: o colapso do sistema de saúde, a multiplicação exponencial dos óbitos, o desemprego e à espreita, a fome, afetam de maneira aguda os territórios de favelas e periferias. Para a idiocracia, a pandemia é uma arma de destruição em massa que realiza o darwinismo social bolsonarista: a sobrevivência dos mais ricos, às expensas dos mais pobres.
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