“A Assembleia Legislativa atuará de maneira a facilitar o acesso aos dados, informações e documentos de interesse público por ela produzidos ou sob sua guarda, pautando-se pela transparência e pela publicidade em todos os seus atos, observadas as normas constitucionais e legais.” O trecho é do artigo 2º da deliberação 2.555, de 3 de janeiro de 2013, assinada por Dinis Pinheiro, então presidente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). No entanto, pouco mais de uma década depois, o Poder Legislativo estadual mineiro é o único a esconder o nome dos mais de 4.500 funcionários da Casa e seus salários. Uma denúncia anônima sobre o assunto foi enviada ao Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) em 2019 e, quase meia década depois, o inquérito continua aberto, sem conclusão. Procurada, a ALMG argumentou que segue a legislação mesmo sem divulgar os nomes dos servidores.
As despesas com vencimento sem transparência no 3º trimestre de 2023, por exemplo, custaram ao povo mineiro R$ 324.787.933,61. Os salários de servidores ativos somaram, no período, R$ 82,1 milhões. Já os 2.360 funcionários nomeados para ocupar cargos em comissão, ou seja, sem concurso e por escolhe livre de deputados, somam R$ 79,8 milhões a cada trimestre. A folha de inativos, com média de 1.244 beneficiados, consumiu R$ 115,7 milhões, enquanto os salários dos membros dos Poderes geraram mais R$ 7,3 milhões em gastos. Cinco pensionistas representaram mais R$ 329 mil em dispêndios e 12 policiais civis e militares que prestam serviços para a Casa consumiram mais R$ 164 mil.
Ao acessar a folha de pagamento da ALMG, os nomes dos servidores não aparecem, diferentemente de todas as outras Casas Legislativas estaduais. O máximo que a Casa mineira faz é colocar o cargo supostamente ocupado pelo servidor e os valores com vencimentos, apenas registrados por um número de registro de cada um.
Ministério Público de Minas Gerais tem inquérito aberto sobre assunto desde 2019
O caso de falta de transparência da ALMG já é conhecido inclusive de outras autoridades. Em contato do Estadão com o Ministério Público mineiro, a assessoria de imprensa do procurador-geral de Justiça, Jarbas Soares Junior, afirmou que a PGJ está com inquérito aberto desde setembro de 2020. Antes, o caso estava na promotoria especializada na defesa do patrimônio público, desde 2019.
“Em setembro de 2020, os autos de investigação foram encaminhados à Procuradoria-Geral de Justiça. Em fevereiro de 2021 foram determinadas diligências junto à ALMG no intuito de se adequar o portal de transparência substituindo o número de matrículas dos servidores pelos respectivos nomes. Em decorrência da eleição, em 2023, do atual presidente da ALMG, reiniciaram-se as tratativas com o procurador-geral da ALMG que, sopesando a situação, solicitou prazo para concluir as implementações a respeito do tema”, informou a assessoria de Jarbas Soares Junior.
Um dos temores pela falta de transparência da ALMG é a possibilidade de contratação do que ficou conhecido popularmente por “assessor fantasma”, quando uma pessoa é contratada, mas não realiza serviços, de fato, no Poder Legislativo. O MP-MG recomendou marcação de ponto para controlar a frequência dos servidores. “Aos servidores que, em virtude das peculiaridades do cargo, possuem autorização legislativa para prestarem serviços externos à sede da ALMG, estabeleceu-se a obrigatoriedade da apresentação mensal de relatórios discriminando as atividades desempenhadas, a localidade, bem como documentos que atestem a contraprestação laboral, o que também tem ocorrido”, afirmou a PGJ.
Assembleia de Minas afronta Supremo Tribunal Federal
O método de divulgação de valores salariais da ALMG vai contra decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a divulgação total dos dados. O Tribunal, ao analisar o tema 483 da repercussão geral, por unanimidade e nos termos do voto do relator, deu provimento ao recurso extraordinário, fixando-se a tese de que “é legítima a publicação, inclusive em sítio eletrônico mantido pela administração pública, dos nomes dos seus servidores e do valor dos correspondentes vencimentos e vantagens pecuniárias”. A decisão da Corte é de 23 de abril de 2015.
O acórdão com a decisão foi publicado no dia 1º de julho daquele ano. O então relator Teori Zavascki citou em seu voto uma decisão anterior do ex-ministro Carlos Ayres Britto, que decidiu a favor da transparência, já em 2011. “Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo ‘nessa qualidade’ (§ 6º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano”, citou Britto em trecho da decisão de 2011.
Zavascki, então, afirmou que “à luz dessa orientação fica evidente que não é inconstitucional e não padece de qualquer ilegitimidade a publicação, em sítio eletrônico mantido pela administração pública, do nome dos seus servidores e do valor dos correspondentes vencimentos brutos e de outras vantagens pecuniárias. Sendo legítima a publicação, dela não decorre dano moral indenizável”, disse à época Zavascki.
Na ocasião, outros ministros do STF se manifestaram a favor da transparência dos dados relacionados aos servidores públicos. A ex-ministra Rosa Weber, em breve manifestação, disse que o âmbito de proteção de privacidade é mitigado quando se trata de serviço público. “Tenho decisões publicadas nessa mesma linha, sempre enfatizando que aquilo que se chama âmbito de proteção da privacidade do cidadão fica extremamente mitigado, a meu juízo, quando se trata de agente público, com destaque ao que também foi muito bem colocado da tribuna”, disse a então ministra.
O também ex-ministro Marco Aurélio Mello foi no mesmo sentido. “O servidor público não pode pretender ter a mesma privacidade que tem o cidadão comum. É princípio básico da administração pública, no que visa a eficiência – outro princípio –, o da publicidade. O servidor público, o agente público, o agente político estão na vitrina. São, de início, um livro aberto. Entre o interesse individual e o coletivo, o público, prevalece o coletivo”, afirmou. Na sequência, ampliou. “E há aqueles que acham que não devem contas aos contribuintes. Devemos, passo a passo, contas aos contribuintes.”
É o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano”,
Carlos Ayres Britto, ex-ministro do STF, durante julgamento do ARE 652777
A ministra Cármen Lúcia, na oportunidade, informou ter dado publicidade ao seu vencimento antes da aplicação da lei da transparência. “Esta Lei de Acesso à Informação é uma lei que muda a administração pública. Ela ajuda, se ela não é perfeita, como nenhuma lei é, depende exatamente da interpretação e da aplicação. E é por isso que, neste caso, o provimento deste recurso se faz exatamente no sentido de garantir a efetividade e a mudança de uma tônica e de um modelo de administração pública, no que me parece tornar cada vez mais republicano. Falo isso de maneira insuspeita, porque, antes de a lei sair, eu liberei o meu contracheque, que foi publicado, inclusive com número de conta e tudo mais. Portanto, não vejo realmente como se adotar a mesma visão para quem não opta, não escolhe um cargo público, numa República, e para aquele que não faz essa escolha”, disse, à época, a então presidente da Suprema Corte.
E há aqueles que acham que não devem contas aos contribuintes. Devemos, passo a passo, contas aos contribuintes
Marco Aurélio Mello, ex-ministro do STF, durante julgamento do tema 483
Pedido via Lei de Acesso à Informação feito em julho de 2023 se perde na ALMG
A ALMG demorou mais de seis meses para responder um pedido de informação via Lei de Acesso à Informação. Em 18 de julho de 2023, um pedido de acesso a uma nota fiscal no valor de R$ 50,4 mil pela qual o deputado estadual Caporezzo (PL-MG) pediu reembolso por meio da verba indenizatória por tratar-se de divulgação da atividade parlamentar. O prazo legal para a resposta é de 20 dias, prorrogáveis por mais 10.
Dessa forma, a resposta deveria ter sido apresentada ao cidadão até 18 de agosto. Na semana passada, o Estadão ligou para o Centro de Atendimento ao Cidadão (CAC), setor responsável por responder os pedidos, que sequer conseguiu encontrar o número do protocolo feito em junho. O pedido só foi respondido na noite do dia 24 de janeiro, após a reportagem pedir um posicionamento da ALMG.
Ainda assim, o Legislativo mineiro não disponibilizou a íntegra da nota fiscal. Apenas disse que as informações estão disponíveis em seu site. Porém, é possível apenas ver a empresa e o valor das notas fiscais, mas não os itens exatos que foram pagos e pelos quais os parlamentares pedem reembolso. No caso de Caporezzo, o parlamentar disponibilizou, após pedido da reportagem por meio da assessoria de imprensa, a íntegra da nota fiscal em questão: ele utilizou R$ 50,4 mil para imprimir 63 mil exemplares de uma revista de oito páginas com as ações de seu mandato.
Nove assembleias criam empecilhos para consulta salarial de servidores
Das 26 Assembleias Legislativas Estaduais, e a Câmara Legislativa do Distrito Federal, nove apresentam problemas de transparência na disponibilização de dados dos servidores. Nada, porém, comparado com Minas Gerais. Na Bahia, Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Roraima os nomes dos servidores são divulgados, mas os salários não aparecem. Os Legislativos dos Estados publicam códigos, que podem ser conferidos em outro espaço. Já Acre, Amazonas, Ceará, Maranhão e Pará exigem que o pesquisador digite o nome parcial ou completo do servidor para ter acesso aos dados salariais.
O Estadão não conseguiu contato por telefone ou e-mail com as Assembleias do Acre, Amazonas, Maranhão e Roraima. Por e-mail, Bahia, Ceará, Mato Grosso do Sul, Pará e Pernambuco não retornaram até o momento. Os Legislativos estaduais estão em recesso. O espaço está aberto para manifestação.
Mesmo sem nomes, ALMG considera cumprir a legislação
Procurada para se manifestar sobre a ausência de nomes dos servidores em seu portal, a Assembleia de Minas afirmou que “promove a transparência das informações relativas ao uso de recursos públicos para suporte ao trabalho político-parlamentar, especialmente de forma ativa, por meio da disponibilização de dados no Portal da Casa, em atendimento às determinações da Lei de Acesso à Informação (LAI)”.
Além disso, ALMG afirmou que “em relação ao quadro de pessoal, é publicada a folha de pagamento mensal, com a especificação da remuneração de cada servidor, de maneira individualizada, conforme estabelece a LAI”.
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“Da mesma forma, são publicadas todas as nomeações e exonerações de servidores de recrutamento amplo, por caracterizarem o início e o término do vínculo desses servidores com a Casa, configurando-se eventuais movimentações ocorridas durante a sua vida funcional como atos administrativos internos”, completou a ALMG.
Quanto à verba indenizatória para custeio de atividades inerentes ao exercício do mandato, a Assembleia afirmou que “disponibiliza mensalmente, no seu Portal, o detalhamento dos ressarcimentos realizados, por deputado, juntamente com os dados das notas fiscais comprobatórias de cada despesa”. Assim, a ALMG entende que “essas informações ficam, portanto, acessíveis para quaisquer interessados.
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