6 mil armas sumidas: busca por arsenal de CACs emperra com jogo de empurra entre Exército e PF

Recadastramento de 2023 apontou que arsenal cobiçado por facções ‘sumiu’ das mãos de CACs, mas compromisso do governo de localizar e apreender itens não foi cumprido; Ministério da Justiça diz que atua ativamente para reforçar os mecanismos de controle e fiscalização desses armamentos

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Foto do author Guilherme Caetano
Atualização:

BRASÍLIA – O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ignorou o imbróglio das 6.168 armas de fogo de uso restrito, como fuzis, que não foram reapresentadas no sistema oficial por seus donos e podem estar nas mãos de criminosos organizados, traficantes de drogas e milicianos.

A inexistência de informações sobre o paradeiro desse arsenal foi o principal achado do recadastramento das armas adquiridas por civis, procedimento exigido pelo governo no pacote de medidas tomadas para restringir a política armamentista do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Até agora, porém, nenhuma medida específica foi tomada e o assunto saiu do foco do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).

O ministro Ricardo Lewandowski e o ex-ministro Flávio Dino com o presidente Lula Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

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Procurado, o ministério informou que tem atuado ativamente para reforçar os mecanismos de controle e fiscalização desses armamentos (leia mais abaixo). As armas não recadastradas são três vezes mais do que as 2 mil que teriam sido traficadas de Miami para o Rio de Janeiro, conforme apontado na Operação Cash Courier, deflagrada nesta quinta-feira, 20.

O recadastramento foi feito no primeiro semestre de 2023, no início do governo Lula, quando Flávio Dino era ministro da Justiça. Os Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) que adquiram armas a partir de maio de 2019 precisaram reapresentar dados pessoais e de acervo.

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Se, por um lado, a Polícia Federal conseguiu contabilizar ainda mais armas de uso permitido do que o Exército havia feito (894.890 no recadastramento contra 882.801 registradas no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas, o Sigma), por outro, houve o “sumiço” das armas de uso restrito. Havia 50.432 no sistema militar, mas só 44.264 foram recadastradas na PF.

A explicação oficial para a ausência de respostas governamentais a um tema considerado por especialistas como de elevada gravidade é uma inércia do próprio governo. Em resposta a pedido apresentado por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a PF afirmou que ainda não assumiu a competência para registrar e fiscalizar os CACs e, por isso, não poderia atuar.

Tendo em vista que a atribuição de fiscalização das atividades de CACs permanece com o Comando do Exército até a presente data, a Polícia Federal não possui respaldo legal para qualquer ação de Polícia Administrativa junto àquele público, limitando-se, portanto a comunicar o Comando do Exército as armas recadastradas”

Polícia Federal, em resposta sobre providências após recadastramento de armas

Em audiência no Senado em maio de 2023, o então ministro da Justiça, Flávio Dino, reconheceu a gravidade do problema das armas não recadastradas e disse que providências seriam tomadas.

“Volto a lembrar que são 6.168 armas de uso restrito, fuzis, que não foram recadastradas, ou seja, sumiram. Onde essas armas estão? Nós vamos descobrir e vamos apreender. Mas todas as semanas a imprensa mostra que grande parte dessas armas foi parar exatamente na mão da milícia do PCC, do CV e de outras organizações criminosas”, declarou aos parlamentares.

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Informalmente, servidores do MJSP disseram que não há o que ser feito em relação às armas sem paradeiro enquanto a incumbência da fiscalização dos CACs não for transferida completamente à PF. Como mostrou o Estadão, o processo de transferência está empacado no governo federal.

Em dezembro, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, anunciou o adiamento do prazo para a transferência de atribuições por pelo menos seis meses, de janeiro para julho. A demora coloca a fiscalização de armas no País numa espécie de “limbo”, segundo especialistas.

O MJSP informou que “o recadastramento de armas realizado em 2023 foi uma etapa essencial para a revisão da política armamentista no Brasil e para o enfrentamento do descontrole no acesso a armamentos, especialmente os de uso restrito”. Após a publicação da reportagem, o Exército informou, em nota, que “cumpre fielmente as prescrições legais”.

Informou também que os dados obtidos no recenseamento “foram utilizados para embasar medidas concretas, como a Operação Day After”, conduzida pela Polícia Federal em 2023 e que cumpriu diversos mandados de prisão e apreensão pelo País. Também menciona que uma das principais medidas em andamento para o combate ao descontrole de armas é justamente a transferência da fiscalização, que está parada.

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Especificamente sobre as armas de uso restrito não cadastradas, o ministério disse apenas que “tem atuado ativamente para reforçar os mecanismos de controle e fiscalização desses armamentos e que uma das principais medidas em andamento é a transferência da competência de fiscalização dos CACs para a Polícia Federal”.

‘Omissão é incompreensível’, diz pesquisador

Para o pesquisador conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) Roberto Uchôa, o fato de o País não ter enfrentando o sumiço das armas restritas é preocupante porque o governo não deveria estar preocupado somente com novas aquisições de armas.

“Se cerca de 12% das armas de calibre restrito não foram recadastradas, isso deveria ser prioridade do governo, seja através da Polícia Federal ou do Exército. O que não pode acontecer é não sabermos sequer se essas armas ainda estão com seus proprietários. E justamente por serem de calibres restritos, para as quais o acesso deveria ser ainda mais difícil, é incompreensível essa omissão”, destacou o autor do livro “Armas para Quem? A busca por armas de fogo”.

O especialista destacou que as armas restritas são as que mais interessam às organizações criminosas e o o total delas com paradeiro desconhecido não é desprezível.

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“Estamos falando de um número de armas que poderia armar uma brigada inteira de um Exército. Não basta dificultar a entrada em circulação de novas armas, é preciso fiscalizar as que já estão nas ruas e principalmente ir atrás das que aparentemente ‘desapareceram’”, disse.

PF ainda não tem garantia de efetivo para fiscalização de CACs

Os servidores e terceirizados solicitados pela PF para assumir a fiscalização dos CACs ainda não foram garantidos pelo governo federal. Dos 1.170 servidores de nível médio apontados como necessários para que a polícia assuma a nova responsabilidade, o concurso autorizado pelo Ministério da Gestão e da Inovação permitiu somente 100. E dos 700 terceirizados requisitados, só 579 devem ser disponibilizados.

O total de funcionários envolvidos na nova atribuição deixa dúvidas sobre o cumprimento do prazo, prorrogado para julho, e sobre os resultados que a PF vai obter no controle e na fiscalização dos CACs. A execução desse trabalho pelo Exército sempre foi alvo de críticas de governistas, embora a Força coloque cerca de 2,2 mil militares nessa função. Para efeito comparativo, a PF tem, ao todo, cerca de 14,5 mil policiais.

Em nota, o Ministério da Gestão destacou somente que foram autorizadas, desde 2023, 1.392 vagas para provimento por meio concursos na Polícia Federal, para diferentes áreas, “com a possibilidade de provimento adicional de mais mil vagas em 2026″.

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O MJSP, o Exército e a PF encerraram suas respectivas etapas para concluir o repasse de atribuição. Os militares repassaram o Sigma — o banco de dados das armas de fogo de uso permitido e restrito dos CACs no País — para os policiais federais, que integraram os dados à sua própria plataforma, o Sistema Nacional de Armas (Sinarm). O acordo envolve não só a fiscalização, mas a concessão dos registros de armas para os CACs, hoje também sob responsabilidade do Exército.

Na PF, a ideia é que o controle de armas ganhe uma coordenação-geral específica dentro do organograma da corporação — hoje o tema está sob a Coordenação-geral de Controle de Serviços e Produtos, um guarda-chuva responsável também por produtos químicos e segurança privada.

A preocupação recai sobre o volume de armas de fogo que ficará a cargo da PF. A previsão é que a corporação herde dos militares a fiscalização de 900 mil CACs e 1,3 milhão de armas. Atualmente, o Sinarm é responsável por 3 milhões de armas.

O risco, alertam integrantes da corporação, é o de que o serviço não seja mais eficiente do que o prestado pelo Exército, alvo de críticas pela pouca intensidade de fiscalizações e pelo descontrole dos CACs.

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