BRASÍLIA - A atuação dos governadores do Norte e do Nordeste já rendeu muitos recursos para as duas regiões. Desde 2019, quando passaram a atuar em bloco, os 16 Estados conseguiram receber da União R$ 123 bilhões a mais do que efetivamente arrecadaram em impostos.
No mesmo período, Sul, Sudeste e Centro-Oeste contribuíram mais e receberam menos de volta. A conta inclui tudo que o governo federal recolhe de impostos e o dinheiro que volta em forma de transferência para Estados e municípios.
Após a criação do Consórcio Nordeste, em 2019, o saldo de recursos para os Estados e municípios da região e do Norte aumentou 15%, enquanto o retorno para Sul, Sudeste e Centro-Oeste caiu 30%.
Os números motivaram o lançamento de uma frente do Sul e do Sudeste para se contrapor ao Nordeste, como anunciou o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), em entrevista ao Estadão. O objetivo, disse o mineiro, é, pela primeira vez, atuar politicamente para evitar que essa política “se perpetue”.
Leia aqui a íntegra da entrevista com Zema
“Sul e Sudeste vão continuar com a arrecadação muito maior do que recebem de volta? Isso não pode ser intensificado, ano a ano, década a década. Se não você vai cair naquela história, do produtor rural que começa só a dar um tratamento bom para as vaquinhas que produzem pouco e deixa de lado as que estão produzindo muito. Daqui a pouco as que produzem muito vão começar a reclamar o mesmo tratamento. É preciso tratar a todos da mesma forma”, disse Zema na entrevista ao Estadão.
Norte e Nordeste recebem mais como forma de compensar as desigualdades históricas da população. E por que Norte e Nordeste seguem concentrando os piores indicadores do País? Especialistas dizem que o dinheiro é repassado sem avaliação e critérios técnicos, com distorções dentro da própria região. Agora, Sul e Sudeste querem uma nova divisão do bolo.
O Nordeste se manteve com o menor rendimento médio mensal domiciliar per capita no País, R$ 1.011, em 2022, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os 50% mais pobres da região sobreviviam com R$ 348 mensais. O analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais também é maior na região (11,7%) do que em outras. Já o Norte tem o menor índice de saneamento básica com domicílios ligados à rede de esgoto (38%).
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Para se ter uma ideia das diferenças, o Nordeste arrecadou R$ 166 bilhões em impostos federais só no ano passado e recebeu quase R$ 200 bilhões em recursos da União. O Sudeste, com uma arrecadação muito maior, em função do que é produzido na região, repassou R$ 1,5 trilhão e ganhou R$ 191 bilhões de volta, menos do que o dinheiro enviado para o Nordeste.
Princípio está correto, mas repasse é feito com equívocos, diz ex-secretário da Receita
A situação é histórica. Até a vinda da família real para o Brasil, no início do século XIX, a economia do Brasil se concentrava no Nordeste. Mas depois houve um deslocamento para o Sudeste, com a capital se instalando no Rio de Janeiro, as indústrias se estabelecendo na região e os movimentos migratórios. A criação de Brasília, a nova capital, no Centro-Oeste e uma série de fundos para repassar recursos ao Norte, Nordeste e Centro-Oeste na sequência - consolidados na Constituição de 1988 - tentaram corrigir essa concentração.
“As desigualdades existem, o objetivo do Estado brasileiro é reparar as desigualdades e jamais repararia se houvesse uma transferência proporcional”, diz Everardo Maciel, consultor tributário e ex-secretário da Receita. Ele defende o princípio, mas diz que na prática o que é feito tem muitos “equívocos”, impedindo o desenvolvimento das regiões mais pobres.
Entre as distorções, Everardo Maciel aponta o fato de os critérios de distribuição serem constantes no Fundo de Participação dos Estados (FPE), e não dinâmicos de acordo com a renda e a população, além de o dinheiro ser entregue sem planejamento e um projeto arrojado de desenvolvimento regional.
O Fundo de Participação dos Estados (FPE) define quanto cada um recebe de recursos federais. São Paulo, com 20% da população, recebe 1,16%. Maranhão, com 3% da população, tem 6,67% do fundo.
“O que o Brasil não tem é planejamento, inclusive de desenvolvimento regional. Não tem como corrigir a desigualdade com critério estático. E os fundos regionais hoje não valem nada, servem para aumentar a desigualdade social”, afirma o ex-secretário.
O que o Brasil não tem é planejamento, inclusive de desenvolvimento regional. Não tem como corrigir a desigualdade com critério estático. E os fundos regionais hoje não valem nada, servem para aumentar a desigualdade social.”
Everardo Maciel, consultor tributário e ex-secretário da Receita Federal
Os únicos Estados que não recebem mais do que arrecadam no Norte e no Nordeste são Bahia, Ceará e Amazonas. “Em termos de distribuição de recursos, os valores dos tributos federais são arrecadados na região Sudeste e Sul e voltam mais para o Nordeste, considerando as regras de população e renda. Esse é o modelo constitucional de redistribuir recursos”, explica o consultor de orçamentos da Câmara Ricardo Volpe. “Municípios maiores e capitais recebem mais. Para resolver, outras cidades deveriam ser beneficiadas com infraestrutura e serviços.”
Dinheiro fica concentrado em cidades mais ricas
As transferências fizeram com que Norte e Nordeste se tornassem mais dependentes dos repasses federais. Nesses Estados, de 30% a 70% da arrecadação vem da União, enquanto Sul e Sudeste ficam abaixo dos 30%. O dinheiro dos fundos constitucionais é operado por bancos públicos comandados por apadrinhados de líderes políticos dessas localidades.
Em 2019, o Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas (CMAP) fez um pente-fino nos fundos regionais em um período de 10 anos e concluiu que o repasse para Norte e Nordeste favorece as cidades de alta renda e estagnadas na economia, em detrimento das áreas de renda baixa e que poderiam se desenvolver, se concentrando em poucas localidades. Ou seja, é uma desigualdade dentro das próprias regiões. O trabalho foi realizado por técnicos da Controladoria-Geral da União (CGU) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A microrregião de Fortaleza ocupou o primeiro lugar no ranking de recursos recebidos do fundo do Nordeste entre 2007 e 2017, enquanto os municípios dos lençóis maranhenses (MA), com população mais pobre, ficaram na 188º posição. “O Fundo de Participação dos Estados é para equalizar receita per capita. Os fundos constitucionais seriam para isso, mas são mal avaliados”, observa Josué Pellegrini, ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado e economista na Warren Brasil.
Separando apenas os municípios de alta renda, há uma concentração ainda maior dentro desse grupo, com 76,1% dos empréstimos em Fortaleza, Salvador e Recife. Outro apontamento da avaliação: o governo não é eficiente para monitorar e avaliar se de fato o dinheiro está reduzindo as desigualdades regionais, como determina a Constituição.
“As regiões Norte e Nordeste não conseguem atrair adequadamente investimentos porque têm uma concentração populacional menor e condições socioeconômicas diferentes”, diz Juliana Inhasz, coordenadora do curso de Economia do Insper. “Se o governo não auxiliar gerando incentivos, vai inchar cada vez mais os centros urbanos do Sul e Sudeste a ponto que a coisa começa a se deteriorar.”
Cada fonte de recurso do governo federal tem uma regra diferente, o que acaba dificultando o equilíbrio e motivando a disputa entre governadores. No Sudeste, o Rio de Janeiro leva 21,2% dos royalties do petróleo de todo o País, por ser um Estado produtor, enquanto Minas Gerais tem 0,09%. “O Zema não deveria estar brigando com o Nordeste, deveria brigar com o Rio. Minas tem um grande problema previdenciário e recebe uma migalha”, diz o economista Raul Velloso, especialista em contas públicas.
O Zema não deveria estar brigando com o Nordeste, deveria brigar com o Rio. Minas tem um grande problema previdenciário e recebe uma migalha.”
Raul Velloso, economista e especialista em contas públicas
Emendas privilegiam Norte e Nordeste, mas distribuição interna é desigual
Quando o assunto são as emendas parlamentares, recursos indicados por congressistas para seus redutos eleitorais e que crescem cada vez mais, também há desigualdade. O Nordeste foi a região mais beneficiada por emendas, com R$ 35 bilhões entre 2019 e 2022, um terço do total. Junto com o Norte, o bloco ficou com quase metade do dinheiro indicado por políticos no País (48%), apesar de ser o menos populoso.
Os maiores valores foram repassados a municípios com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo. A distribuição poderia se justificar, considerando as desigualdades sociais, mas há discrepâncias internas: entre as cidades com até 20 mil habitantes, 487 que possuem IDH baixo e receberam menos do que a média dada para outros municípios no ano passado, período eleitoral, enquanto 77 localidades com IDH alto ficaram acima da média. Resumindo, o critério é político.
A distribuição das emendas abriu um deserto de representatividade política, como o Estadão já revelou. Além disso, os recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) não são distribuídos de acordo com os indicadores da área, mas conforme a escolha dos parlamentares. Isso sem falar do crescimento das emendas Pix, que são enviadas sem nenhuma finalidade específica e fiscalização, gerando um apagão no planejamento e no controle.
Políticos do Nordeste argumentam que a região se desenvolveu nos últimos anos, mas ainda tem os piores indicadores econômicos e sociais que justificam os repasses. “Foi o processo histórico de industrialização do Brasil que levou o País a ter grande parte dos parques industriais em uma região em detrimento de outra. Não adianta olhar o Nordeste como aquela região de seca e pobrezinha. O Nordeste é outra região hoje e, recentemente, tem crescido mais do que a média nacional”, afirmou o governador da Paraíba e presidente do Consórcio Nordeste, João Azevêdo (PSB).
O poder político do Norte-Nordeste
A atuação em bloco do Norte e Nordeste também tem garantido aos políticos das duas regiões protagonismo político. Desde a redemocratização, a Câmara foi presidida dez vezes por parlamentares do Nordeste de um total de 24 mandatos, considerando as reeleições. No Senado, parlamentares do Norte e Nordeste presidiram a Casa 18 vezes de um total de 24.
Juntos, Norte e Nordeste tem 216 deputados federais - 151 do Nordeste e 64 do Norte. A região Sudeste tem 179 deputados e o Sul, 77, um total de 256 parlamentares. Com esse número de parlamentares, Sul e Sudeste conseguem, por exemplo, aprovar um projeto de lei complementar, que necessita de exatos 256 votos.
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