A defesa dos direitos dos autistas virou bandeira política no Brasil. Somente na Câmara dos Deputados há mais de 200 projetos de lei e até mesmo Propostas de Emenda à Constituição (PECs) em tramitação para conceder benefícios, assegurar a inclusão ou reduzir a jornada de trabalho dos pais. Mas, neste Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, as principais demandas das famílias seguem as mais básicas: acesso na rede pública a diagnóstico e tratamento baseado em evidências.
Estipulada em 2007 pela Organização das Nações Unidas (ONU), a data visa alertar sistemas de saúde de todo o mundo para a importância do diagnóstico precoce, condição essencial para aumentar as chances de uma maior qualidade de vida. No Brasil, no entanto, a rede de serviços gratuitos especializados é deficitária, tornando o tratamento um privilégio de pacientes com planos de saúde caros que reembolsam (muitas vezes mediante decisão judicial) pagamentos mensais superiores a R$ 13 mil.
Em São Paulo, governo estadual e Prefeitura não dispõem sequer de centros de referência em Transtorno do Espectro Autista (TEA), como oferecem, por exemplo, Rio Grande do Sul, Bahia, Amapá e cidades como Uberlândia (MG) e São Gonçalo (RJ). Familiares precisam perambular pela capital em busca de atendimentos de psicologia e fonoaudiologia, os mais comuns, além de fisioterapia e terapia ocupacional.
Enquanto isso, a demanda só cresce. Segundo o mais recente dado do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, uma a cada 36 crianças nascidas está dentro do espectro. Em 2012, essa relação era estimada em uma a cada 88. Se não implica políticas públicas, a estimativa explica o interesse de parlamentares em se posicionar na comunidade, tida como combativa.
A jornalista e agora deputada estadual Andréa Werner (PSB-SP) é uma das representantes da rede de pais que luta por visibilidade e direitos das pessoas com TEA. “O autista, como uma pessoa com deficiência, tem muitos direitos, mas que precisam ser fiscalizados. Desde que cheguei à Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) já vi que há cerca de 40 projetos sobre o tema, mas não acho que precisamos de mais leis, talvez alguma coisa pontual, apenas. Precisamos é cobrar o cumprimento dessas leis. Tem cidade sem psiquiatra, com fila de dois anos para uma avaliação”, disse Andréa.
Mesmo após obter o diagnóstico, a via-sacra das famílias não termina. “Essa é só a primeira barreira, já que não existe intervenção baseada em evidências no Sistema Único de Saúde (SUS). Quem consegue ser atendido é só uma vez por semana, por cerca de meia hora e, às vezes, em grupo. Não é essa a recomendação. É até desperdício de recurso público e perda de tempo das famílias”, observou a deputada.
Pioneira na defesa dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil, a senadora Mara Gabrilli (PSD-SP) afirmou que o poder público precisa otimizar a rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), que já têm capilaridade, para acelerar a ampliação da oferta.
“Penso que se poderia criar o CAPs Azul, para atendimento exclusivo dos autistas. Nem que fosse um espaço dentro das unidades existentes, mas pensado para esse público e separado dos demais atendimentos, como os voltados para usuários de álcool e drogas.” A cor azul é símbolo do autismo.
Mara disse perceber no dia a dia o interesse crescente de colegas pelo TEA. “Quando entrei para a política, em 2004, virou moda defender os deficientes. Muita gente vê isso como uma plataforma política de sucesso. O lado bom é que o tema ganha visibilidade, mas temos de ficar de olho porque ainda há muito desconhecimento”, afirmou a senadora.
Mas, aos poucos, as próprias famílias têm buscado o diagnóstico a partir de observações feitas em casa. É o caso dos pais de Gael Araújo, de 3 anos. O atraso na fala e as dificuldades de compreensão de comandos simples fizeram a mãe, Larissa Araújo, trocar o Maranhão por São Paulo em busca de apoio e respostas.
Déficit
Na terça-feira, 28, a reportagem do Estadão visitou o Centro Especializado em Reabilitação (CER) Tucuruvi, na zona norte da capital, onde Gael é atendido. O equipamento é um dos 26 existentes na Prefeitura que reúnem, na mesma unidade, as terapias mais recomendadas, incluindo hidroterapia. O serviço é bem avaliado pelas famílias, mas a intensidade do tratamento está longe do ideal. Nos Estados Unidos, recomendam-se até 40 horas de intervenção semanal na primeira infância.
A dona de casa Juliana Fonseca Iamamoto sabe que uma hora por semana, dividida em terapia ocupacional e sessão conjunta de fono e psicologia, não basta para o filho Daniel Fonseca Iamamoto, de 4 anos, alcançar o desenvolvimento almejado. “Precisamos de mais horas de intervenção e também de terapia baseada em ABA (análise do comportamento), que é a recomendada”, afirmou.
Desde março, o tratamento ainda se tornou penoso em função do tempo gasto no transporte público. “Nós nos mudamos do centro para Itaquera, na zona leste. Mas não consegui transferir a terapia dele. Então, temos de gastar uma hora e meia para ir e o mesmo tempo para voltar”, disse. “Daniel já chega cansado.”
Questionada pela reportagem, a Prefeitura afirmou que vai providenciar a transferência de Daniel para um CER da zona leste. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, o número de atendimentos realizados em unidades básicas, CERs, CAPs e demais equipamentos pré-hospitalares cresceu 235% entre 2019 e o ano passado, quando foram 88.934 autistas atendidos. A pasta também informou que pretende implementar, em 2024, o primeiro centro municipal para pessoas com TEA.
Fila de espera
A abertura de serviços, no entanto, está longe do ritmo necessário e não apenas em São Paulo. Estudo da Gradual Social – braço de pesquisa do Grupo Gradual, especialista em intervenção comportamental no Brasil – mostra que existem hoje apenas 17,7 mil vagas para terapias gratuitas em todo o País. Enquanto isso, segundo estimativas internacionais, nascem quase 60 mil crianças autistas todos os anos no Brasil.
O levantamento considerou equipamentos públicos e privados que atendem o SUS, como as unidades da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). A pesquisa revela que o déficit no sistema é de 40 mil vagas por ano e que, em média, 27 pessoas com TEA compõem a fila de cada serviço público existente no Brasil.
“O autismo entrou de fato na pauta e agora é hora de dar visibilidade às ações necessárias. Essa quantidade de projetos de lei engrossa o caldo. É importante, porque estamos falando de uma questão de saúde pública. O dado epidemiológico mostra a necessidade de termos serviços que preparem essas pessoas para a vida. Não é apenas ensinar de forma intensiva, mas saber o que ensinar”, afirmou a doutora em Psicologia Experimental Leila Bagaiolo, cofundadora da Gradual.
A amiga e sócia Claudia Romano, também doutora em Psicologia Experimental, observou que, diante da demanda cada vez maior por serviços públicos, é urgente firmar parcerias com a iniciativa privada. “Seria muito mais viável financeiramente usar a rede investindo na capacitação dos profissionais com parâmetros bem delimitados de formação.”
Claudia e Leila são pioneiras no Brasil no estudo e na aplicação de terapias baseadas na análise do comportamento, chamada de ABA (Applied Behavior Analysis).
No CER Tucuruvi, são cerca de 140 autistas atendidos. A maioria frequenta o espaço uma vez por semana. “É um problema mesmo de demanda maior que oferta. Mas, diante desse quadro, é preferível atender mais gente, o quanto antes”, disse a fonoaudióloga Lilian Cristina Correa, responsável técnica da unidade.
A Secretaria Estadual da Saúde informou que pretende adotar uma tecnologia de rastreio para identificar atrasos do neurodesenvolvimento aos 18 meses de idade. A pasta também afirmou que qualifica e capacita profissionais para diagnóstico e tratamento.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.