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Opinião|A atualização do modelo democrático

A correção das disfunções do modelo atual

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convidado
Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho

1. O modelo pelo qual se pretende efetivar a democracia moderna é simples, claro e lógico. Baseia-se na liberdade e na igualdade como seus valores essenciais.

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Parte da ideia de que todos os seres humanos têm a mesma natureza – são animais racionais e sociais - portanto têm a mesma dignidade e os mesmos direitos. É o valor igualdade. Esta natureza é caracterizada pela liberdade, ou seja, pela livre determinação da própria conduta. É o valor liberdade.

Assim, devem conduzir a própria vida e só hão de aceitar limitações à liberdade na estrita medida social em que isto é necessário para a vida social.

Como esta pressupõe, segundo a experiência, a necessidade de um governo, este deve ser escolhido por aqueles que a ele se haverão de sujeitar. É a soberania democrática.

Esta governança, ademais, se deve guiar pela vontade geral, tanto agindo no interesse geral, como se pautando pela lei que expresse esta vontade geral.

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Tal vontade geral emana da racionalidade dos seres humanos, não da mera vontade de todos.

Neste ponto, é Rousseau o mestre (Contrato Social, livro I).

E estes fundamentos são indiscutíveis.

2. Entretanto, para vida de todos os dias, nem todos os seres humanos podem dedicar-se à governança e por isso precisam atribuir a representantes esta tarefa. Tais “governantes” devem, em consonância com o exposto, ser escolhidos pelo povo – o conjunto dos seres humanos – a fim de zelar pelo interesse geral, obedecendo sempre às leis.

Tais representantes-governantes – aduza-se a contribuição de Montesquieu – devem, todavia, possuir uma capacidade que nem todos os seres humanos possuem – em francês de “discuter les affaires”, em mau português e numa versão livre, de debater as questões que se ponham com argumentos racionais (Espírito das Leis, livro XI, cap. 6º). Presumindo-se que assim tomem a melhor decisão no interesse geral.

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Estes representantes devem ser eleitos pelo povo. É isto uma exigência da democracia moderna, baseada na igualdade.

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Nela, também transparece um visão própria e nova da democracia moderna – a preocupação com a capacidade do representante. Com efeito, a opção pela eleição não é imotivada. Nas democracias antigas os magistrados eram designados por sorteio, nas aristocracias é que o eram por eleição, porque está seria adequada para a seleção dos melhores (aristos), ou mais capazes).

3. Estas lições são indiscutíveis.

São a essência do modelo, embora este possa e deva ser completado com outros, como a limitação do poder e a garantia dos direitos fundamentais. Estes pontos vêm da advertência do próprio Montesquieu, para o qual “todo homem que tem poder é levado a abusar dele; vai até onde encontra limites. Donde “para que não possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder detenha o poder” (Espírito das Leis, Livro XI, cap. 4º).

4. Para tanto, Montesquieu desenhou a divisão funcional do Poder entre um Legislativo, com Executivo e um Judiciário, cada com atribuições próprias e definidas (Espírito das Leis, Livro XI, cap. 6º). Mas independentes e harmônicos.

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Isto impacta o sistema presidencialismo que, hoje, nada consegue sem harmonia com o Legislativo. A harmonia entre eles reclama, sem dúvida uma transformação, quiçá um semipresidencialismo. Como também que o Poder não político (v. Constituição de 1988, art, 2º) que é o Judiciário não imerja em questões de repercussão política, criando-se uma Corte constitucional que defenda a supremacia da Constituição.

5. Esta harmonia pressupõe o Estado de Direito.

Este, como John Adams fez inscrever no art. 30 da Constituição do Massachussets de 1780: “O governo de leis, não de homens”. Ou seja, a recusa do arbítrio que inverte a frase lapidar.

Este governo de leis é imprescindível para a liberdade, porque, como está na Declaração de 1789 ( art. 5º)e na Constituição brasileira em vigor (art. 5º, II) que “ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude lei”.

Nada, portanto, pode fazer o Executivo que não tenha base na Lei.

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7. Observe-se que para a plenitude do Estado de Direito a resposta a situações de grave crise, como a guerra e as calamidades, seja enfrentada de acordo a lei, e não por meio de uma “democracia militante” que o renega. O constitucionalismo clássico o fez, estabelecendo uma legalidade excepcional para as próprias situações emergenciais, como o estado de sítio e congêneres, mas os moldes da guerra contemporânea e o terrorismo tornaram ineficaz o que foi criado tendo em vista as batalhas napoleônicas.

É esta uma exigência indispensável para impedir o arbítrio.

8. Todos esses princípios fundamentais são inerentes à Constituição, a Leis suprema de um Estado de Direito.

Com efeito, registra a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 no art. 16: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos (fundamentais) não é assegurada, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.

E a garantia da Constituição depende de uma Corte a ela exclusivamente dedicada, que não possa ser utilizada, como se fosse uma câmara de última instância do Legislativo.

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9. O modelo democrático hoje adotado é um progresso da civilização, mas enseja algumas disfunções quando aplicado à sociedade contemporânea, integrada por milhões de seres humanos, cujo povo é dividido em grupos de formação, cultura e instrução diferentes, desigual no nível de riqueza, etc. Em suma, não homogêneo.

Ademais esse povo, na maioria dos Estados, compreende milhões e milhões de seres humanos que não se conhecem, não se encontram na praça pública, não podem em consequência ter o mesmo nível de informação, seja quanto à aqueles que se propõem a representá-los e governá-los, seja quanto aos problemas complexos que devem ser racionalmente debatidos para serem racionalmente decididos.

Os pais do modelo certamente não podiam antever tudo isto, muito menos a tecnologia moderna, a televisão e a internet, como também conceber como missão do poder realizar o bem estar de todos, embora pretendessem alcançar para todos a felicidade, segundo afirma a Declaração de Independência dos trezes treze Estados unidos da América de 1776.

Não seria necessário atualizar o modelo em face dos novos tempos?

10. Destaque-se um aspecto como exemplo.

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Por mais racional que seja o ser humano ele não pode tomar uma decisão racional na escolha dos representantes, se não tiver informação suficiente sobre eles. Quer dizer sobre suas qualidades e defeitos – que estas sim são apercebidas no convívio na praça pública – sobre as suas concepções da vida e do mundo, sobre suas ideias, especialmente políticas. Ele não é chamado a escolher entre conhecidos, mas entre (relativamente) desconhecidos, cuja imagem é suscetível de manipulação, bem como a informação que lhe chega aos olhos.

O que o eleitor pode conhecer é limitado. Pode conhecer o partido e assim intuir as ideias políticas do candidato (se o partido não for mera máquina para atingir o poder) e não raro o candidato não adere ao partido por convicção mas por oportunismo, tanto o que o deixa e muda sem hesitação. Basta isto? Não seria necessário que pudesse avaliar seu caráter e suas ambições? E sua real capacidade, senão eventualmente pela experiência? Se pudesse fazê-lo quantas decepções teriam sido evitadas.

Claro está que os meios de comunicação de massa levam até ele numerosas informações que suprem parcialmente a lacuna. Entretanto, nem sempre são isentos de parcialidade, como podem servir a interesses que não são os do bem comum. Ademais, no mundo contemporâneo, a informação não é fornecida apenas pela imprensa, pelo rádio, pela televisão, mas por uma infinidade de redes que pela internet difundem até “fake news, notícias falsas, distorcidas (pecado que é bem anterior e não exclusivo de tais redes).

11. Não se pode ademais ignorar que as campanhas eleitorais não se travam mais em termos do debate racional de ideias e programas, mas são feitas por meio da propaganda e esta infiltra os próprios meios de comunicação mais seguros.

Ora a propaganda foi desenvolvida para vender, não para informar ou debater. Ela não se concentra em argumentação, não mira a racionalidade humana, mas o inconsciente humano, os sentimentos, as paixões do ser humano. Na verdade, muitas vezes não hesita em explorar o que de pior tem o ser humano no plano do inconsciente, do irracional. Desencadeia radicalismos, semeia ilusões, não contribui para uma decisão racional, mas para a uma decisão irracional. O marqueteiro, não mais o ideólogo, é a figura chave da campanha. Esta, com ele esquece dos programas, como o esquecem e os próprios partidos, e enfatiza imagens que constrói. Não raro falsas.

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E quanto isto custa, em todos os sentidos do verbo.

É preciso coibir esta disfunção, mas sem ferir a liberdade de expressão. Lembre-se a lição de Becaria: “Nullum crimen nulla poena sine lege.”

12. Lembre-se ademais que os partidos foram consagrados pela racionalização do poder pós 1918, para que o eleitor, ao votar, não escolha apenas o candidato, mas também a orientação política, fixada no programa partidário. Isto exige que eles não sejam meros instrumentos propagandísticos, mas exponham programas verdadeiros.

Para tanto muito contribui a extrema proliferação de partidos sem ideologia nem programa, pois multiplicar em excesso as opções cria uma nuvem de ambiguidades. É o que gera o sistema eleitoral de representam proporcional, como o demonstrou Maurice Duverger, há cem anos, no clássico Les partis politiques.

13. Por outro lado, uma das razões da crise da democracia que persiste e tanto preocupa na atualidade (Journal of democracy, abril de 2024). está no fato de que, não raro, o povo que escolhe está descontente com os que escolhe, porque são incompetentes e governam mal, porque pensam primeiro em si e somente no interesse geral, porque suas ambições os levam à cupidez e à corrupção. Não, num pretenso “populismo”.

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Graças aos céus muitos escapam desses pecados.

14. A questão que se coloca é essencialmente como fazer para que o povo, quando chamado a eleger, tenha informação suficiente para escolher racionalmente quem, em seu nome e no interesse geral, deve governá-lo. E use a razão ao votar, não interesses egoísticos, ou fanatismos, enfim seja “republico” visando ao bem comum. Esta é uma lição de Montesquieu, (traduzida pela expressão de frei Vicente do Salvador) de que a democracia necessita de democratas, ou seja, de um povo que seja formada e imbuída da virtude cívica – o império do bem comum. Montesquieu já o viu no Espirito das Leis (Livro III, cap. 3º) e Raymond Aron o exprimiu para os tempos modernos: a educação para o “respeito às leis” e o “senso do compromisso” (Démocratie et Totalitarisme, p. 85).

15. Para a efetivação verdadeira da democracia no mundo contemporâneo, como um governo pelo povo para o povo, importa corrigir as disfuncionalidades que existem - as mencionadas e outras. Muitas delas nem exigem Emenda, mas podem ser feitas por simples leis que corrijam os erros da disciplina legal existente.

Assim, é preciso atualizar o modelo democrático, não desrespeitando o passado, mas levando em conta o presente e o futuro.

SP 4/5/2020 atualizado em 3/5/2024

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Manoel Gonçalves Ferreira Filho
Professor Emérito de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP. Foto: Reprodução/Uniregistral
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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

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