Foto do(a) blog

Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Opinião | A cadeia de custódia nos crimes digitais

A perícia forense digital, por exemplo, tornou-se uma área indispensável, fornecendo as ferramentas necessárias para a coleta e análise de evidências digitais. No entanto, a velocidade com que a tecnologia avança muitas vezes supera a capacidade de adaptação das instituições, criando um hiato explorado pelos criminosos

PUBLICIDADE

convidados
Por André Rosengarten Curci e Flavio Goldberg

Nos últimos anos, a evolução da tecnologia trouxe consigo uma série de transformações significativas para diversas áreas do conhecimento humano, e o Direito Criminal não ficou imune a tais mudanças. A era digital apresenta um novo cenário, repleto de desafios e oportunidades para a Justiça Criminal.

PUBLICIDADE

A criminalidade digital ou cibercrime abrange uma vasta gama de atividades ilícitas realizadas pelos meios eletrônicos, e entre os crimes mais comuns estão as fraudes eletrônicas, o roubo de identidade, a pornografia infantil, a violação de direitos autorais e os ataques cibernéticos.

A legislação penal tradicional muitas vezes não consegue abarcar as peculiaridades dos delitos cibernéticos, deixando lacunas que podem ser exploradas pelos criminosos. Tanto é que nos últimos anos foram criadas leis que alteraram questões sensíveis e importantes na lei penal e processual penal no ambiente dos crimes virtuais.

A investigação criminal na era digital demanda uma atualização constante dos métodos e técnicas utilizados pelas autoridades. A perícia forense digital, por exemplo, tornou-se uma área indispensável, fornecendo as ferramentas necessárias para a coleta e análise de evidências digitais. No entanto, a velocidade com que a tecnologia avança muitas vezes supera a capacidade de adaptação das instituições, criando um hiato explorado pelos criminosos.

A preservação da cadeia de custódia das provas digitais é um desafio, dada a facilidade com que essas provas podem ser alteradas ou destruídas, de modo que a falha ou o descuido na preservação das informações pode comprometer a integridade das provas de um determinado crime virtual e afetar a capacidade do sistema judicial de apurar a verdade material dos fatos.

Publicidade

Nesse sentido, a Lei 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”) introduziu ao Código de Processo Penal o artigo 158-A, o qual disciplina que a cadeia de custódia é o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.

Dessa forma, a principal finalidade da cadeia de custódia é garantir que os vestígios deixados no mundo material por uma infração penal correspondem exatamente àqueles arrecadados pela polícia, examinados e apresentados em juízo. Nos cibercrimes, a cadeia de custódia serve para assegurar que a prova digital não seja alterada, substituída ou destruída desde o momento de sua coleta até sua apresentação nos autos da investigação ou do processo-crime.

Nos crimes virtuais, a cadeia de custódia consiste no processo rigoroso de coleta, preservação, análise e apresentação de evidências digitais, garantindo que a integridade e autenticidade dessas provas sejam mantidas do início ao fim da investigação. Esse processo é fundamental para assegurar que as evidências digitais sejam consideradas válidas em processos judiciais.

O nosso Código de Processo Penal disciplina que a cadeia de custódia se inicia com a preservação do local do crime ou com os procedimentos policiais ou periciais nos quais seja detectada a existência de vestígio, e o responsável pela sua preservação é o agente público que fizer o reconhecimento dessa prova.

O mesmo diploma legal disciplina as dez etapas que devem ser seguidas pelo agente público responsável pelo acondicionamento dos vestígios. São elas: (i) reconhecimento; (ii) isolamento; (iii) fixação; (iv) coleta; (v) acondicionamento; (vi) transporte; (vii) recebimento; (vii) processamento; (ix) armazenamento; e (x) descarte.

Publicidade

Assim, a cadeia de custódia deve ser estabelecida desde o momento em que a evidência digital é identificada e coletada. Isso envolve documentar minuciosamente todos os procedimentos utilizados para garantir que a prova não seja alterada ou contaminada. O responsável pela coleta deve registrar informações detalhadas sobre a origem da evidência, quem a coletou, quando e onde foi coletada, e como foi armazenada.

PUBLICIDADE

As provas obtidas sem o respeito a esses procedimentos podem ser desconsideradas e inadmitidas pelo juízo criminal, nos termos do artigo 157 do Código de Processo Penal.

Importante mencionar que a integridade da cadeia de custódia nos crimes digitais é observada pelos bitstream, hashes, porta lógicas e outros algoritmos que servem para rastrear a origem de determinado vestígio criminal e preservar a prova. Esses elementos também servem para comprovar que determinado elemento probatório, por exemplo, um e-mail, não foi editado, adulterado, suprimido ou adicionado.

Sobre o tema, no julgamento do Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 143.169/RJ, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça já apresentou entendimento acerca da inadmissibilidade de provas digitais sem o registro documental acerca dos procedimentos adotados pela polícia para a preservação da integridade, autenticidade e confiabilidade dos elementos informáticos.

No caso dos autos, um homem foi denunciado por, supostamente, fazer parte de organização criminosa que praticava furtos eletrônicos contra instituições financeiras. Durante a investigação, foram realizadas buscas e apreensões e subsequentes quebras do sigilo de dados armazenados nos aparelhos celulares apreendidos pela polícia.

Publicidade

No entanto, de acordo com o Ministro relator Ribeiro Dantas, os métodos utilizados pela autoridade policial para o acondicionamento dos aparelhos e a extração dos seus dados não foram demonstrados, tampouco foram apresentadas as garantias de que o conteúdo permaneceu íntegro enquanto esteve sob a custódia policial.

O Ministro observou ainda que, embora já sejam há alguns anos conhecidos os procedimentos técnicos necessários para assegurar a integridade de provas digitais, diversos foram os descuidos da autoridade policial no manuseio dos aparelhos apreendidos.

No mesmo sentido, o Ministro afirmou que “A principal finalidade da cadeia de custódia, como decorrência lógica do conceito de corpo de delito, é garantir que os vestígios deixados no mundo material por uma infração penal correspondam exatamente àqueles arrecadados pela polícia, examinados e apresentados em juízo. Busca-se assegurar que os vestígios sejam os mesmos, sem nenhum tipo de adulteração ocorrida durante o período em que permaneceram sob a custódia do Estado.”.

O Ministro Joel Ilan Paciornik afirmou que “As provas digitais são particularmente suscetíveis à manipulações imperceptíveis, o que demanda cuidados extras na sua obtenção e tratamento. A falta de rigor técnico e a ausência de procedimentos adequados podem comprometer a validade e a admissibilidade dessas provas em processo penal.”.

Por essas razões, nos crimes virtuais é imperioso que as autoridades responsáveis pela investigação sigam algumas diretrizes já estabelecidas, dentre elas a norma NBR ISO/IEC 27037:2013, que disciplina de maneira detalhada a melhor forma de manter a autenticidade e integridade da prova digital.

Publicidade

Essa norma é referência internacional para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidências forenses digitais em todas as etapas no processo de investigação. Faz parte das normas da família ISO 27000 - Gestão da Segurança da Informação, sendo a mais relevante na área de perícia forense digital.

A evidência digital considerada na NBR ISO/IEC 27037:2013 pode ser produzida por meio de diferentes tipos de dispositivos digitais, tais como HD, disquetes, CD/DVD, pen-drive, smartphones, tabletes, assistentes digitais pessoais, dispositivos eletrônicos pessoais, cartões de memória, sistemas de navegação móveis, sistemas embarcados, câmeras digitais de vídeo e fotografias (incluindo CFTV), desktops, notebooks, redes baseadas em TCP/IP e outros protocolos digitais, bem como dispositivos com funções semelhantes das descritas acima.

Portanto, no processo penal, a preservação da cadeia de custódia objetiva tutelar a identidade e integridade da prova e a sua inobservância pode comprometer o contraditório e a ampla defesa, assim como causar consequências para a persecução penal, com a inviabilização da prova da materialidade do delito.

A adaptação do direito penal às novas formas de criminalidade exige não apenas uma revisão constante da legislação, mas também um entendimento profundo das tecnologias envolvidas. A criação de leis específicas para crimes cibernéticos é essencial, mas deve ser acompanhada de uma capacitação contínua das autoridades policiais e dos operadores do direito para que possam atuar de maneira eficaz.

Assim, o direito criminal na era digital é um campo dinâmico e em constante evolução. Os desafios são muitos, mas as oportunidades para aprimorar a justiça e a segurança são igualmente vastas. A chave para navegar nesse novo cenário reside na capacidade de adaptação e no compromisso com a proteção dos direitos fundamentais, sem perder de vista a eficiência e a eficácia no combate ao crime.

Publicidade

Convidados deste artigo

Foto do autor André Rosengarten Curci
André Rosengarten Curcisaiba mais
Foto do autor Flavio Goldberg
Flavio Goldbergsaiba mais

André Rosengarten Curci
Advogado e mestre em Direito. Arquivo pessoal
Conteúdo

As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade única do autor.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.