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Opinião | A constitucionalização da polícia científica: um passo crucial

A constitucionalização é medida que se impõe, possibilitando a consolidação da plena autonomia técnica, científica e funcional dos peritos oficiais de natureza criminal, de maneira a fortalecer a produção independente da prova científica

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convidado
Por Marcos Camargo

A reflexão sobre o papel da segurança pública conduz a um profundo aperfeiçoamento das políticas públicas e da persecução penal, que deve ser guiada pelo maior emprego da ciência, levando luz às questões que extrapolem o alcance jurídico. É aqui que se encaixa a polícia científica, como instrumento que permite dar concretude à produção da prova pericial, em absoluta homenagem ao exercício do direito fundamental à prova segura e confiável.

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Cabe à polícia científica auxiliar a Justiça, apurando a materialidade, a autoria e as circunstâncias em que ocorreram as infrações penais, limitando vieses cognitivos e estabelecendo, por meio da atuação dos peritos oficiais, uma ponte entre o que é visível e o que precisa ser revelado. Dessa forma, devolve-se a verdade à sociedade e promove-se o direito fundamental à prova e a estabilidade do sistema de justiça criminal.

Para essa missão, a constitucionalização da polícia científica é medida que se impõe, possibilitando a consolidação da plena autonomia técnica, científica e funcional dos peritos oficiais de natureza criminal, de maneira a fortalecer a produção independente da prova científica. Tal condição, indelével ao Estado Democrático de Direito, alinha-se a diversas recomendações nacionais e internacionais que demandam articulações do Ministério da Justiça e Segurança Pública para o aperfeiçoamento e autonomia dos órgãos periciais, independentemente de onde estejam estruturados, se dentro ou fora das polícias civis.

Tramita no Senado Federal, pronta para a pauta do Plenário, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 76/2019, que busca justamente dar o devido tratamento constitucional à Polícia Científica. A aprovação dessa proposta legislativa tem o condão de reparar uma lacuna constitucional de maneira a permitir maior colaboração científica nas discussões de políticas públicas estruturantes, baseadas em evidências e no melhor cumprimento da atuação da perícia oficial no dever de auxiliar a investigação criminal, a Defensoria Pública, o Ministério Público e o Poder Judiciário.

Coube também ao Supremo Tribunal Federal discutir a importância e o modelo de atuação dos órgãos de polícia científica. Estabeleceu a Suprema Corte, por meio dos julgados referentes às Ações Diretas de Inconstitucionalidades (ADI’s) 6621, 4353 e 2943, a possibilidade da desconcentração administrativa dos órgãos periciais, autorizando, entre outros pontos, a existência de estruturas não subordinadas a delegado geral, ainda que no mesmo regime jurídico policial civil, como forma de consolidar a plena autonomia técnica, científica e funcional dos peritos oficiais de natureza criminal para a realização dos laudos periciais.

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Além dessas decisões, o julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1454560, também pelo STF, resultou na possibilidade de se conceder rubrica orçamentária especifica e gestão administrativa e financeira própria a órgãos periciais, independentemente de onde estejam inseridos, estabelecendo esta permissão como pressuposto para a atuação pericial de forma independente e livre de interferências ou pressões.

Quanto à Polícia Federal e sua estrutura pericial, trata-se de instituição que efetivamente goza de grande confiança e prestígio junto à população, dotada de corpo pericial criminal altamente reconhecido e qualificado. As sucessivas direções-gerais, todavia, têm falhado na necessária regulamentação da plena autonomia da atividade de criminalística do órgão.

Leis como a 12.030/09 e 13.047/14, que determinam a autonomia funcional dos peritos criminais e a eles outorgam a direção das atividades de criminalística da PF, vem sendo ignoradas pela instituição, tendo sido comuns a fragmentação da atuação pericial, as tentativas de subordinação da atividade de criminalística, o abuso em nomeações de peritos ad hoc e a flexibilização da obrigatoriedade do exame pericial nos crimes que deixam vestígios – que, como consequência, reduzem e limitam a realização de exames periciais.

Os retrocessos não param por aí. Sob a alegação de não haver vagas disponíveis e ausência de qualquer medida concreta por parte da administração geral do órgão para resolução positiva da questão, a carreira pericial está há quase 10 anos sem concurso público.

O fato é que, a cada oportunidade perdida em ouvir e agregar ciência nas discussões sobre segurança pública, a cada caso não resolvido, a cada crime sem punição, a cada vítima sem resposta e a cada injustiça eventualmente cometida, uma dor se prolonga – e quando o sistema limita as discussões ou reduz a liberdade para que determinadas estruturas funcionem adequadamente, essa dor se agrava. Acima de tudo, está se falando em humanidade, direitos humanos e cidadania.

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A constitucionalização da polícia científica e as recentes decisões da Suprema Corte oxigenam as discussões sobre o modelo de funcionamento da Segurança Pública brasileira, além de consolidar anseios de diversos segmentos da sociedade e de instituições. Importante registrar que tais medidas não tratam de inovação no ordenamento jurídico pátrio, uma vez que a própria Constituição já possibilita que bombeiros militares tenham autonomia em relação às polícias militares, garantindo-lhes a possibilidade de maior especialização e investimento, os quais refletem em ainda mais eficiência e confiança da população.

Trata-se, finalmente, de uma oportunidade histórica para a criação de um legado que poderá ecoar por gerações, oferecendo a possibilidade de um sistema de justiça mais robusto, justo, verdadeiro e eficaz.

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Marcos Camargo
Presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF). Foto: Arquivo pessoal
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