Cada real conta. Nos dias atuais, com aumento generalizado do custo de vida, o mínimo necessário para a sobrevivência dos indivíduos tem custado cada vez mais caro. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), no caso das famílias com renda muito baixa, a alta da inflação, nos últimos 12 meses, é de 6,18%.[1]
Esse índice se torna ainda mais preocupante em face do estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): cerca de 30% dos brasileiros têm renda familiar inferior a R$ 497 mensais.[2]
Os dados constrangem e requerem providências. A esta altura, o setor público pode agir em duas frentes: (i) promover ações paralelas que promovam condições mínimas para o indivíduo de modo a não comprometer seus direitos fundamentais, e (ii) desonerar as camadas mais pobres.
Aqui cabe uma rápida reflexão sem qualquer anseio de exaurir as discussões e as particularidades que envolvem a matéria. Se, por um lado, o perfil assistencialista da Administração Pública se fortaleceu neste Século XXI; por outro, vê-se que o Estado tem pecado em um quesito basilar: exigir tributos independente da capacidade contributiva do indivíduo, nos termos do art. 145 da Constituição Federal de 1988 (CF/88).
Nesse contexto, percebemos que, no âmbito tributário, não há como exigir imposto sobre a renda dos indivíduos mais pobres, na medida em que esse tributo incide, exclusivamente, quando verificada a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de acréscimo patrimonial. [3]
Isso porque, boa parte das famílias brasileiras sofrem com o sufocamento financeiro, sendo que a exigência atual - conforme veremos a seguir - extrapola o patamar econômico do contribuinte, golpeando famílias já combalidas.
Sim, em que pese o dever de pagar tributos por parte dos indivíduos, não se pode admitir a cobrança exacerbada. É nesse contexto que se faz necessária a exigência de justiça social e fiscal para o bom funcionamento da coletividade - elemento finalístico do Direito -, de modo que não pode haver uma sem a outra.
Ou seja, na balança da justiça fiscal, tem-se, como peso, a necessidade arrecadatória; como contrapeso, há o mínimo existencial, que reflete a menor quantia da renda de um indivíduo destinada a pagar despesas básicas que asseguram a manutenção da sua existência, bem como a de seus dependentes, garantindo-lhes uma vida digna, mediante a concretização dos direitos fundamentais estabelecidos pela CF/88.
Afinal, para os nossos Constituintes, seria insuficiente apenas garantir a sobrevivência do indivíduo, tornando-se necessário proporcionar-lhe meios para que haja dignidade e para que, ao alcance do indivíduo, estejam a educação, a saúde, o lazer, o transporte, a segurança e a previdência (art. 6º, CF/88). Por meio desse raciocínio, o mínimo existencial deve nortear as políticas públicas tributárias, evitando retrocesso social.
No tocante ao Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF), é evidente que a exigência tributária no país tem destoado da realidade econômica dos contribuintes e de seus dependentes - não nos esqueçamos destes!
Isso porque, desde 2015, não há qualquer atualização da tabela progressiva do IRPF, nem dos limites para dedução com determinados dispêndios, gerando uma carga tributária desequilibrada e defasada em relação à evolução dos preços praticados na economia, limitando o exercício dos direitos sociais e individuais, ampliando as desigualdades já existentes no Brasil.
De acordo com Celia Murphy, a capacidade contributiva é um mecanismo adotado pelos constituintes para proibir o Estado de cobrar tributo com efeito de confisco, alcançando, ao mesmo tempo, a chamada justiça fiscal.[4]
Nessa linha intelectiva, Regina Helena Costa esclarece que, dentro do espectro ético-econômico, a capacidade contributiva se vincula à justiça tributária.[5]
Poderíamos acrescentar, ainda, que essa vinculação nos permite inferir que o princípio da capacidade contributiva está intimamente relacionado ao princípio da igualdade (art. 5º, CF/88), segundo o qual cada um deve ser tratado de igual modo, na medida de suas desigualdades.
Portanto, cabe ao Estado determinar critérios claros que permitam o tratamento igualitário de contribuintes mediante a constatação de certos padrões, os quais também autorizem tratamento diferenciado - mais ou menos oneroso - para grupos de pessoas que se encontrem em situação específica.
Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a classificação por camada econômica é necessária, ela não pode ser engessada, a ponto de, permanecendo por anos, prejudicar a subsistência do cidadão e de sua família (dependentes), afetando a dignidade do contribuinte.
Dessarte, é condição sine qua non redescobrir a função da Administração Pública diante da razão de sua própria existência, uma vez que o peso da exação fiscal não pode ultrapassar o aspecto individual daquele de quem o tributo é exigido, sob pena de tornar a justiça fiscal um objetivo ainda mais distante do cidadão, tal como é hoje.
No âmbito do IRPF, tem-se a tabela de valores, por faixa de rendimentos. Por ela, a pessoa física que obtiver rendimentos mensais de até R$ 1.903,98 está isenta do pagamento do tributo. Vejamos:
Nesse contexto, nominalmente, a faixa de isenção correspondia a 2,4 vezes o valor do salário mínimo em 2015, que era de R$ 788,00, atualmente equivale, aproximadamente, a 1,5 do salário mínimo, que é de R$ 1.302,00 - porém, a partir de 1º de maio, ele subirá para R$ 1.320,00, refletindo em um incremento de R$ 18,00.
Por seu turno, verificamos que a tabela do IRPF, sem reajuste desde 2016, está em defasagem média acumulada de 148,10%. Observamos que essa análise levou em consideração a evolução dos reajustes e dos resíduos anuais da tabela desde o ano-calendário de 1996, em estudo divulgado pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional).[6]
Logo, caso o Governo Federal implementasse o reajuste integral da tabela do IRPF, a renda mensal isenta sairia do patamar atual de R$ 1.903,98 para R$ 4.465,34. De acordo com as estimativas da Unafisco, esse reajuste significaria uma renúncia fiscal de R$ 184 bilhões para o Fisco Federal.[7]
Noutras palavras, quem ganhava pouco mais de dois salários mínimos em 2015 era isento de pagar o imposto sobre a renda. Porém, atualmente, quem ganha pouco mais de apenas um salário mínimo tem de pagar o tributo. Os dados são alarmantes!
Ou seja, a estagnação da tabela de valores do IRPF, embora prejudique várias camadas sociais, afeta, de modo mais contundente, os mais pobres que, apesar de receberem o reajuste nominal na renda, são expropriados de parcela considerável dos seus ganhos em decorrência da não atualização dos valores da tabela progressiva.
Há, ainda, o problema quanto à estagnação dos valores a serem deduzidos, que também não foram reajustados desde 2015. Neste ponto, vale destacar que o valor mensal de R$ 296,79 para dedução dos gastos com educação, na apuração do IRPF, é irrealista diante do cenário atual em que vivemos, bem como vai em sentido diametralmente oposto às diretrizes constitucionais.
Pois bem, dentre as propostas já desenvolvidas para minimizar essa distorção, podemos citar a apresentada por Fernando Castellani[8], para quem a proteção do mínimo existencial digno deve ocorrer por meio de normas que classificassem as despesas em duas categorias genéricas: necessárias e suficientes.
Enquanto as despesas necessárias abrangeriam as áreas em que os gastos seriam considerados essenciais para o indivíduo (por exemplo, com saúde, moradia e educação), as despesas suficientes estariam relacionadas ao percentual autorizado à dedução por faixa de rendimento e por área correspondente.
Embora pareça complexo, explicamos melhor. O gasto com moradia é considerado necessário? Sim, logo, deveria ser autorizada a dedução. Mas qual o valor a ser deduzido? Depende da faixa de rendimento do contribuinte. Se ele estiver enquadrado na menor camada, logicamente seria autorizado um percentual dedução maior; se estiver na faixa de maior rendimento, o percentual dedutível seria reduzido.
Ou seja, haveria uma autorização para dedução mais próxima da realidade de cada contribuinte. Porém, essa realidade ainda parece distante de nós, infelizmente. Se considerarmos que o aumento do salário mínimo, nestes últimos sete anos, foi abaixo da inflação, a lesão provocada pela não atualização da tabela, por si só, são devastadores.
Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o valor da cesta básica, em agosto de 2022, correspondia a R$ 749,78. Por seu turno, no mesmo mês de referência em 2015, a cesta básica custava R$ 386,04. Assim, a variação nesse período foi de 94%.[9]
Já o aumento do salário mínimo, nesses mesmo sete anos, correspondeu a somente 53%. Essa diferença entre percentuais de aumento da cesta básica e do salário mínimo implica dizer que o brasileiro necessita hoje, proporcional e nominalmente, gastar mais para garantir o mínimo vital na área da alimentação do que há sete anos.
Porém, ainda que tenhamos dado ênfase aos prejuízos sofridos pelas camadas menos abastadas da população em decorrência da estagnação da tabela de valores do IRPF, é bom atentar que a desatualização produz efeito cascata, alcançando também as faixas subsequentes que poderiam contribuinte com menor alíquota para o imposto. Logo, o prejuízo é para todos!
Como ilustram os cálculos apontados pelo Sindifisco Nacional, quem ganha R$ 5.000,00 por mês recolhe R$ 505,64. Contudo, se a tabela do IR fosse atualizada pelo IPCA, o pagamento seria de somente R$ 23,70.[10]
Se a atualização ocorresse pela inflação, de acordo com o Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco Nacional), o número de pessoas isentas do imposto saltaria de 7,6 milhões para 18 milhões.[11]
Pois bem. Diante da pressão política com o novo governo, até mesmo com base nas promessas realizadas durante a corrida eleitoral, a Receita Federal do Brasil (RFB) anunciou no último dia 27/02 que a faixa de isenção do IRPF será ampliada para R$ 2.640,00. Para operacionalizar esse reajuste, a faixa de isenção do IRPF será estendida para R$ 2.112,00, sendo permitida dedução simplificada mensal de R$ 528,00.[12]
Com base nos aspectos analisados, o reajuste da faixa de isenção é suficiente? E a atualização das demais faixas e os limites para dedução? Entendemos que não.
Fato é que as providências e atualizações devem passar por uma reflexão aprofundada sobre o sistema de tributação sobre renda no Brasil. Garantir o mínimo existencial digno mediante a mera atualização pontual (em quase uma década) da tabela de valores é improvável - ainda que seja necessário fazê-lo - , visto que, em uma sociedade com características econômicas cada vez tão diversas, é preciso considerar fatores mais consistentes que indiquem a realidade econômica dos contribuintes, a fim de assegurar o respeito aos princípios da capacidade contributiva e da igualdade, levando, consequentemente, à justiça fiscal.
Portanto, deve-se pensar em alternativas que estejam acima da troca de comando do Poder Executivo, oferecendo ao contribuinte segurança e dignidade, em vez de critérios inflexíveis que somente sejam alterados a bel prazer dos governantes, que sempre parecem adiar os ajustes necessários para o ano que vem e assim sucessivamente...[13]
*Claudia Abrosio, mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Advogada tributarista
*Matheus Sukar, especialista Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Ciência Política pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Advogado tributarista e jornalista
*Rayane Dornelas Sukar, mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Advogada tributarista
[1] Inflação por faixa de renda - Acumulado de 12 meses, até jan/23. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2023/02/inflacao-por-faixa-de-renda-janeiro2023/
[2] Disponível em: https://portal.fgv.br/noticias/mapa-nova-pobreza-estudo-revela-296-brasileiros-tem-renda-familiar-inferior-r-497-mensais
[3] Art. 153, inciso III, da CF/88 e art. 43 do CTN, aprovado pela Lei nº 5.172/66.
[4] MURPHY, Celia Maria de Souza. O imposto sobre a renda à luz da Constituição. São Paulo: Noeses, 2019, p. 54.
[5] COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade contributiva. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 17.
[6] Disponível em: https://www.sindifisconacional.org.br/wp-content/uploads/2023/01/Defasagem_IR_1996_a_2022_Janeiro_2023_10_01_IPCA_IBGE_Revisado-1.pdf
[7] Disponível em: https://valorinveste.globo.com/mercados/noticia/2023/01/11/correcao-da-tabela-de-imposto-de-renda-comprometeria-r-184-bi-em-arrecadacao-diz-entidade.ghtml
[8] CASTELLANI, Fernando Ferreira. O imposto sobre a renda e as deduções de natureza constitucional. São Paulo: Noeses.
[9] Disponível em: https://www.dieese.org.br/cesta/
[10] Disponível em: https://www.sindifisconacional.org.br/wp-content/uploads/2023/01/Defasagem_IR_1996_a_2022_Janeiro_2023_10_01_IPCA_IBGE_Revisado-1.pdf
[11] Disponível em: https://unafisconacional.org.br/unafisco-no-estadao-para-mauro-silva-o-minimo-seria-ajustar-tabela-do-ir-com-inflacao-do-ano-passado/
[12] Receita Federal define novas regras para o Imposto de Renda 2023. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2023/fevereiro/receita-federal-define-novas-regras-para-o-imposto-de-renda-2023#:~:text=A%20faixa%20de%20isen%C3%A7%C3%A3o%20do,restitui%C3%A7%C3%A3o%20do%20que%20foi%20retido.
[13] Disponível em: https://www.estadao.com.br/economia/haddad-diz-que-precisa-esperar-2024-para-corrigir-tabela-do-ir-mas-poderia-fazer-este-ano/
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