Em 1993, o Nordeste passava por uma das mais severas estiagens enfrentadas na região, com impactos sociais e econômicos decorrente de uma séria dependência da água. O artigo de Dom Luciano Mendes de Almeida, então presidente da CNBB, publicado no jornal O Estado de S. Paulo (2/4/1993, p. 11), revelava que naquele mês de março mais de 1,8 milhão de pessoas em 225 municípios da zona rural do Nordeste teriam sido atingidas pela seca.
É nesse contexto que veio à tona o escândalo de corrupção que envolvia o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), um órgão público federal responsável pela construção de obras de infraestrutura no Nordeste do país.
O estopim foi a utilização de verbas públicas do DNOCS para a construção de poços em terras particulares, que pertenciam ao Deputado e Presidente da Câmara Inocêncio Oliveira (PFL-PE), ao Senador Ney Maranhão, dentre outros. O escândalo veio à tona em 21 de abril de 1993, pela reportagem “A Indústria da Miséria”, da Revista Veja (Edição 1284, p. 16-17).
O DNOCS, criado em 1909, tinha por objetivo perfurar poços e construir açudes no Nordeste, como forma de combater a seca e promover o acesso à água aos moradores da região. Segundo dados da Revista Veja, desde que foi criado, o DNOCS teria perfurado cerca de 25.000 poços, sendo que 18.000 foram destinados a particulares. Dos 800 açudes construídos, apenas 300 foram em prol das populações das regiões que sofriam com a seca. Os outros 500 teriam sido construídos em fazendas de particulares, para uso privado.
No caso de Inocêncio Oliveira, ele teria utilizado o DNOCS para abrir dois poços em Serra Talhada (PE), um na Santa Casa de São Vicente e outro na Sertanol, bem como uma concessionária de motos, todos na propriedade do então presidente da Câmara Federal. A água obtida pelos poços, que poderia ter sido utilizada para abastecer cerca de 12 carros-pipas, era usada para lavar as motocicletas da concessionária, que ficavam empoeiradas após a viagem pelo sertão (Veja, 1993, p.24-27).
Já Ney Maranhão teria se beneficiado dos recursos do DNOCS para abastecer sua fazenda e dar água a, aproximadamente, 200 cabeças de gado, que criava em vitória do Santo Antão, PE. O então senador, que fazia parte dos partidários de Fernando Collor, havia causado perplexidade ao declarar publicamente que sonegava impostos, afirmando que “todos os empresários têm o rabo preso, têm caixa dois e quem não sonega quebra. Eu também sonego”, admitindo ter utilizado do DNOCS para fins particulares, como também reclamou dos serviços a ele prestados. Para ele, a água a qual ele teve acesso era “salgada e imprestável para o pasto”.
Até 1993, O DNOCS havia consumido, somando-se os subsídios, cerca de 20 bilhões de dólares. O resultado desse escândalo envolveu, ainda, o ex-prefeito do Recife José do Rego Maciel (pai do então Senador Marco Maciel), três deputados estaduais, dois vereadores e o ex-senador Mansueto de Lavor, além de empresários, grandes fazendeiros e até mesmo concessionárias de multinacionais (segundo lista do então deputado Vital do Rêgo, do PDT). Isso foi tratado com descaso, uma vez que nenhum dos acima citados foi condenado pelo mau uso da verba pública. No caso de Inocêncio Oliveira, político com maior destaque no escândalo, após um esclarecimento por parte do deputado na Câmara, ele defendia que os poços “tinham função social” e após se comprometer a pagar pelas perfurações (preços subsidiados), o caso foi considerado, pela maioria, inepto, sendo encerrado sem maiores complicações.
A única sanção aplicada, pelo presidente Itamar Franco, foi a demissão do Diretor do Dnocs em Pernambuco José Adailton Monteiro. O Diretor Geral, do Dnocs em 1993, Luiz Gonzaga Nogueira Marques, também citado na reportagem por ter usufruído do Dnocs para perfurar poços na sua casa de praia, em Beberibe (CE), não foi implicado.
Em janeiro de 1999, na gestão do governo de Fernando Henrique Cardoso, pela Medida Provisória http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/mpv 1.795-1999?OpenDocumentn. 1.795, tentou mudar a atuação do Dnocs pela transferência das funções para outros órgãos da administração pública federal, como o Ministério da Integração Nacional e a Agência Nacional de Águas (ANA). Essa medida fazia parte do plano de reforma do Estado, com o objetivo de modernizar a administração pública e reduzir custos.
Na gestão de Jair Bolsonaro, o seu programa de governo previa a extinção do DNOCS e a transferência das suas funções para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), mas sucumbiu frente à pressão de parlamentares. Atualmente, o DNOCS é uma autarquia federal, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional, com orçamento de R$ 999 milhões, segundo dados do Portal da Transparência.
O caso DNOCS revela a dimensão do problema da corrupção no país e a necessidade de transparência e de accountability na gestão pública. A transparência se refere a tornar as informações públicas acessíveis a todos, como informações sobre orçamentos, gastos públicos, decisões políticas, processos de licitação e outros assuntos de interesse público. A accountability significa responsabilizar os indivíduos e instituições pelos seus atos. Isso quer dizer que eles devem responder pelas suas decisões e ações, bem como que devem ser punidos se cometerem irregularidades. Esses dois componentes são pilares fundamentais de boa governança e de uma sociedade mais justa.
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