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Opinião|A defesa penal do idoso

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Por Antonio Ruiz Filho e Letícia Mendes Rodrigues

O Brasil deixou de ser um país de jovens. A natalidade vem caindo e a longevidade, aumentando. Esse fenômeno demográfico, não fosse por outras razões, impõe que haja maior proteção aos idosos, assim tecnicamente reconhecidos pela lei como pessoas a partir dos 60 anos de idade. As pessoas dessa faixa etária, à medida que vão se tornando menos capazes e necessitadas de auxílio, tornam-se vulneráveis a toda sorte de violências.

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Sensível a essa realidade, a ex-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), Maria Odete Duque Bertasi, reuniu um grupo de estudiosos do direito para realizar uma obra sobre a Violência Contra Pessoa Idosa, prefaciada pela Professora Ivete Senise Ferreira, recentemente publicada pela editora Imperium. Coube a nós examinar a contribuição do Direito Penal e do seu processo para a efetiva proteção dos idosos, detalhadamente exposta no livro, cujas principais ideias vamos aqui resumir.

A Constituição Federal de 1988, no que concerne às garantias fundamentais, já no seu preâmbulo, prevê a instituição de “um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”. Mediante tais princípios, o constituinte originário objetivou construir uma sociedade solidária, orientada a promover o bem comum, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Na busca por uma sociedade justa e igualitária, em que o bem-estar de todos apresenta-se como um valor fundamental, era natural que os idosos gozassem de proteção especial pelo nosso ordenamento jurídico. Daí a própria Constituição estabelecer que “os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade” e, mais amplamente, que “a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida (art. 229 e 230 da CF).

No mesmo sentido, a Lei 10.741/2003 (Estatuto da Pessoa Idosa) preconiza o dever da família de zelar pela proteção das pessoas idosas e pelos direitos a elas inerentes. Desde então, o Direito Penal tornou-se apto a proteger a pessoa idosa com especial tutela jurídica, adotando figuras penais direcionadas a fazer cumprir seus direitos. Apesar da responsabilidade atribuída à família prioritariamente, não são raros os quadros de violência contra pessoas idosas praticados por familiares e pessoas próximas, embora sejam os filhos capazes os principais detentores do dever de cuidado, em razão do natural processo de envelhecimento e consequente inversão de posições.

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Tal violência pode ser definida por ações ou omissões que causem lesão, morte, sofrimento físico, sexual, psicológico, moral e patrimonial, prejudicando a integridade das pessoas desse grupo etário, inclusive de forma a impedir o desempenho de seu papel social. A negligência da família com o cuidado das pessoas idosas ou até seu abandono, certamente são os tipos de violência mais comuns (podendo se materializar pela negativa de fornecer-lhes alimentos, higiene e moradia adequados, de receber os devidos cuidados com sua saúde e, inclusive, atividades de lazer). Portanto, os crimes de omissão de socorro e de abandono contra a pessoa idosa (arts. 97 e 98 do Estatuto, respectivamente) traduzem violências praticadas nesse contexto de negligência do dever de cuidado, além de se assemelharem a outros delitos previstos no Código Penal.

Consolidando o avanço da legislação para proteger essa parcela mais vulnerável da sociedade, o Estatuto da Pessoa Idosa prevê detalhadamente os interesses e as necessidades especiais das pessoas a partir dos 60 anos, dispondo sobre seus direitos fundamentais, bem como a obrigação da família, em primeiro lugar, da comunidade, da sociedade e do Poder Público em assegurar à pessoa idosa a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária (art. 3º do EPI), garantindo-lhes pleno exercício da cidadania, mesmo que inativos ou sujeitos aos cuidados de terceiros para sua subsistência.

Dentre os aspectos processuais previstos no Estatuto cabe mencionar o art. 95, que estabelece os crimes nele previstos como de ação penal pública incondicionada, não dando margem à manipulação desses direitos, agora sob a guarda direta do Ministério Público; isto é, a ação será promovida pelo Ministério Público independentemente de qualquer autorização da parte ofendida.

A ação penal para apuração dos delitos praticados contra pessoas idosas tramitará no juízo criminal da Justiça comum ou perante o Juizado Especial Criminal, a depender da pena imposta ao delito em questão. Não obstante, o art. 70, da Lei 10.740/03, prevê que o poder público poderá criar varas especializadas e exclusivas da pessoa idosa, que em tese imprimiriam maior celeridade aos processos de interesse dessa faixa etária, assim como o art. 71 do Estatuto assegura prioridade na tramitação dos processos em que figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a 60 anos. E, segundo o art. 94, aplica-se o procedimento previsto na Lei 9.099/95 aos crimes do Estatuto cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse quatro anos. Entretanto, de acordo com entendimento manifestado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI n.º 3.096, tal previsão possibilitou apenas a utilização do procedimento sumaríssimo, não sendo permitida, todavia, a aplicação das medidas despenalizadoras existentes na referida Lei.

Já no âmbito material, o art. 95 veda a aplicação das chamadas escusas absolutórias previstas nos arts. 181 e 182 do Código Penal aos crimes em que figurarem como sujeitos passivos as pessoas idosas. Tais dispositivos isentam de pena aquele que cometer qualquer um dos “Crimes Contra o Patrimônio”, em prejuízo do cônjuge na constância da sociedade conjugal ou de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural, e condiciona as ações penais à representação do ofendido se o crime previsto naquele título é cometido em prejuízo do cônjuge desquitado ou judicialmente separado, de irmão ou de tio ou sobrinho com quem o agente coabita. Caso o art. 95 não impusesse tal vedação, haveria isenção de pena, por exemplo, no furto praticado pelo filho em prejuízo do pai idoso, o que se revelaria incompatível com os mecanismos de proteção à pessoa idosa.

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Os crimes em espécie estão previstos no Capítulo II do Título VI do Estatuto da Pessoa Idosa (arts. 96 a 109). Em suas disposições finais e transitórias, a legislação especial deu nova redação ao Código Penal, em seu art. 61, II, “h”, para incluir entre as circunstâncias agravantes o fato de o crime ser praticado contra idoso, e determinando o aumento de pena em casos de crimes cometidos contra pessoa maior de 60 anos nos casos de homicídio doloso (art. 121, §4º); abandono de incapaz (art. 133, §3º); no sequestro e cárcere privado (art. 148); na extorsão mediante sequestro (art. 159); e no crime de injúria, se consistir na utilização de elementos referentes à condição de pessoa idosa (art. 133, §3). Também sofreram alterações, para prever o aumento de pena, a contravenção de vias de fato (art. 21, § único, do Decreto-Lei nº 3.688/1941) e o delito de tortura (art. 1º, §4º, inciso II, da Lei no 9.455/1997), sempre que cometidos contra pessoa maior de 60 anos.

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Deve-se destacar que no Estatuto da Pessoa Idosa não há nenhum crime exclusivamente omissivo, mas somente aqueles que definem, ao mesmo tempo, condutas comissivas e omissivas, o que se verifica nos crimes descritos nos seguintes artigos: 97 (omissão de socorro), 98 (abandono), incisos III (dificultar atendimento médico), IV (deixar de cumprir execução de ordem judicial) e V (omitir dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil), 100 e 101 (frustrar execução de ordem judicial).

Quanto aos delitos de omissão de socorro ao idoso (art. 97) e abandono de idoso (art. 98), de modo especial, além de possuírem ambas as modalidades de conduta em suas descrições típicas, também são característicos por possuírem semelhanças com outros delitos previstos fora da legislação especial, aos quais se acresceu a condição de ser a vítima pessoa idosa. As condutas previstas nos artigos citados possuem, como característica, maior afinidade em relação ao contexto de negligência e descaso no cuidado das pessoas idosas.

O Estatuto da Pessoa Idosa (Lei 10.741/03) representou grande avanço, inclusive ao utilizar o Direito Penal (pela magnitude dos bens juridicamente tutelados) – apesar de considerado ultima ratio – como instrumento apto a proteger e assegurar o cumprimento dessas garantias especiais e constitucionais. Contudo, o Direito Penal não é capaz, isoladamente, de solucionar todos os problemas existentes na sociedade e, por isso, condutas praticadas no contexto de negligência do dever de cuidado inclusive atribuído à família, mesmo após a edição do EPI, ainda constituem violências ocorrentes na nossa sociedade. Desse modo, para alcançar o respeito absoluto aos direitos das pessoas mais velhas, é necessária a conscientização de cada cidadão com relação à vulnerabilidade e imprescindibilidade de um maior acolhimento dessa parcela da sociedade.

É nosso dever legal e ético o cuidado com as pessoas idosas do nosso núcleo familiar, da vizinhança ou de qualquer outro ambiente em que estivermos inseridos, sendo obrigatório o acionamento das autoridades competentes ao menor sinal de maus-tratos ou abandono, além da atuação pessoal, sempre que estiver ao nosso alcance. Ao Estado incumbe criar e ampliar políticas públicas que visem a proteger e amparar a pessoa idosa – em especial as vítimas de qualquer tipo de violência – para que, a par da tutela penal, o nosso sistema de proteção à pessoa idosa se torne cada vez mais efetivo e afetuoso.

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Todos que tiverem a ventura de viver mais chegarão à idade provecta, tendo a oportunidade de sentir na própria pele a medida do avanço civilizatório em que vão passar seus últimos anos e dias. Não é sem razão que as sociedades mais evoluídas são exatamente aquelas que melhor acolhem pessoas vulneráveis, dedicando-se a amparar seus idosos, oferecendo-lhes amor e dignidade, mesmo quando não estejam em condições de retribuir.

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Antonio Ruiz Filho
Advogado criminalista, graduado pela PUC-SP em 1984, sócio de Ruiz Filho Advogados, é diretor da Federação Nacional dos Advogados (FeNAdv) e presidente da Comissão de Defesa da Democracia e Prerrogativas da mesma entidade. Foi conselheiro, diretor e presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), por duas gestões, e conselheiro, presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas e diretor da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP)
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