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Opinião | A delação premiada diante do direito intertemporal

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convidado
Por Rogério Tadeu Romano

Relatou o portal de notícias do jornal O Globo, em 7.6.24, que “o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), líderes do Centrão e a bancada do PL, partido de Jair Bolsonaro, costuram a votação, a toque de caixa, de um projeto que proíbe delações premiadas de réus presos. Caso seja aprovado, parlamentares entendem que o texto poderia beneficiar o ex-presidente, que está na mira da Justiça e é implicado pela colaboração do ex-ajudante de ordens Mauro Cid.”

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O projeto de lei proíbe a validação de delações premiadas fechadas com presos e criminaliza a divulgação do conteúdo dos depoimentos.

As normas que envolvem o instituto da delação premiada são de natureza processual.

Trata-se de um meio de prova, mas, para que seja considerada, há a necessidade da presença de três requisitos: a) o corréu que fez a delação tenha confessado a sua participação no crime; b) a delação encontre amparo em outros elementos de prova existentes nos autos; c) no caso de delação extrajudicial, que tenha sido confirmada em juízo. Sem esses requisitos e sem que tenha sido respeitado o contraditório, com possiblidade de reperguntas pelas partes, a delação não tem qualquer valor, sendo um ato que é destituído de eficácia jurídica.

O instituto da delação premiada se perfaz quando o agente colabora de forma voluntária e efetiva com a investigação e com o processo penal. Seu testemunho deve vir acompanhado da admissão de culpa e servir para a identificação dos demais coautores ou partícipes, e para esclarecimento acerca das infrações penais apuradas.

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O acordo de colaboração contém a enumeração de algumas obrigações dos criminosos, como a entrega de uma lista com os nomes de pessoas que foram beneficiadas pelos crimes, mas contém também este compromisso expresso assumido pelo chefe do Parquet: “o benefício legal do não oferecimento de denúncia”, como está expresso na cláusula 4ª. do acordo de colaboração. Assim, os criminosos não serão sequer enquadrados como réus em processo criminal, podendo assim fazer a prova de bons antecedentes. Para dar a aparência de legalidade a esse extraordinário favor, é indicado o artigo 4º, parágrafo 4º, da Lei 12850, de 2013, que introduziu no sistema jurídico brasileiro a colaboração premiada.

Determina o artigo 1º, parágrafo 5º, da Lei 12.683, o que segue:

“Parágrafo 5o A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.”

O parágrafo quinto do artigo 1º da Lei 9.613/98 foi alterado pela Lei 12.683/12, com o objetivo de ampliar as hipóteses de ocorrência da chamada delação premiada. Àquele que colaborar espontaneamente com as investigações e prestar esclarecimentos que auxiliem na apuração dos fatos, na identificação dos agentes da lavagem do dinheiro ou na localização dos bens, será beneficiado com a redução da pena, sua extinção ou substituição por restritiva de direitos.

O dispositivo, como se sabe, trata da colaboração espontânea nos crimes de lavagem de dinheiro. Estabelece os seus requisitos e consequências jurídicas, com relação a pena a ser aplicada, até admitindo a não aplicação da pena.

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O ato de delação há de ser espontâneo, pois não pode ser um ato provocado por terceiro.

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Disseram Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini (lavagem de dinheiro, 2ª edição, pág. 172) que a lei não estabeleceu, entre as frações variáveis de 1/3 a 2/3 de redução da pena, qual o critério a ser seguido pelo julgador para aplicar a redução mínima ou mesmo um patamar intermediário. O critério a ser seguido deverá, sem dúvida, ser a eficácia da delação, seja em termos de atingimento das finalidades previstas, na lei, seja em relação ao conjunto de elementos que o delator forneça para confirmar as suas declarações.

Sob o ponto de vista processual, a delação consiste na afirmação feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido extrajudicialmente, pela qual além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participação no crime como seu comparsa.

Trata-se de um meio de prova, mas para que seja considerada, há a necessidade da presença de três requisitos: a) o corréu que fez a delação tenha confessado a sua participação no crime; b) a delação encontre amparo em outros elementos de prova existentes nos autos; c) no caso de delação extrajudicial, que tenha sido confirmada em juízo. Sem esses requisitos e sem que tenha sido respeitado o contraditório, com possiblidade de reperguntas pelas partes, a delação não tem qualquer valor, sendo um ato que é destituído de eficácia jurídica.

Há importantes pontos quanto ao instituto que são objeto da Lei 13.964/19.

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A nova lei anticrime, em vigor desde o dia 23 de janeiro de 2019, impôs uma maior disciplina à negociação entre os colaboradores.

Estabelece o artigo Art. 3º-A, da Lei 13.964, que “O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos”.

Por outro lado, o artigo 3º-B estabelece que “O recebimento da proposta para formalização de acordo de colaboração demarca o início das negociações e constitui também marco de confidencialidade, configurando violação de sigilo e quebra da confiança e da boa-fé a divulgação de tais tratativas iniciais ou de documento que as formalize, até o levantamento de sigilo por decisão judicial”.

Rogério Sanches Cunha (STJ: denúncia não pode ser fundamentada exclusivamente em colaboração premiada) assim disse:

“É um meio de obtenção de prova, no entanto, que não se basta, pois, segundo o disposto no § 16 do art. 4º, “Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”. O dispositivo exige, para embasar a condenação, outras provas além das palavras do agente colaborador. É dizer: se a declaração se mostrar isolada, sem correspondência em alguma outra prova, ela não se prestará, por si só, para justificar um édito condenatório. E é pertinente a limitação, pois, se até mesmo a confissão perdeu seu caráter absoluto, não sendo mais considerada a rainha entre as provas, devendo, por isso, ser confrontada com outros elementos de prova, com muito mais razão a colaboração premiada merece esse status. Cumpre, portanto, analisá-la no bojo do conjunto probatório, sopesando seu valor frente aos demais elementos probantes, autorizando-se, a partir daí e se for o caso, uma condenação.

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Pierpaolo Cruz Bottini e Luciano Feldens vão além. Para os autores, “evidente que a delação premiada – por si – não é suficiente para uma acusação formal contra alguém, e que sua instituição não transforma as autoridades policiais em meros espectadores de denúncias alheias. Trazidas as informações, por meio de pessoa identificada, o Estado tem o dever de averiguar sua credibilidade, seus fundamentos, para evitar que rixas e inimizades pessoais ou comerciais se transformem em persecuções sem fundamento, como danos irreparáveis à imagem dos envolvidos. Mas isso não desmerece o instituto, cujo êxito é percebido a cada crime desbaratado pelo arrependimento – real ou estratégico – de um dos integrantes da empreitada criminosa. Enfim, a substituição de uma política simbólica, baseada no aumento de penas, por uma política eficaz, fundada na gestão da informação, dentro dos parâmetros legais e constitucionais que cercam a atividade estatal, parece a resposta mais adequada à criminalidade organizada”.

Com base nisso, o STJ deu provimento a recurso em habeas corpus ( RHC 98.062/PR, j. 15/04/2019) para trancar ação penal ajuizada com lastro exclusivo em colaboração premiada promovida por um dos agentes.”

Do mesmo modo é nula a condenação de réu baseada exclusivamente em delação premiada contra ele apresentada.

Por outro lado, lembre-se, o projeto de lei acima noticiado proíbe delações premiadas de réus presos.

Necessário saber sobre sua aplicação diante do direito intertemporal.

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Tem-se do Código de Processo Penal:

Art. 2º A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

Fernando da Costa Tourinho Filho ( Código de Processo Penal Comentado, vol. I, pág. 22) lecionou: ¨Se a lei nova instituir ou excluir fiança, instituir ou excluir prisão preventiva, etc... tal norma terá eficácia imediata, a menos que o legislador expressamente determine tenha a lei mais benigna ultra-atividade ou retroatividade.¨

Na lição de Guilherme de Souza ( Código de processo penal comentado, 10ª edição, pág. 70) expôs que a regra é que seja ela aplicada tão logo entre em vigor. Passa a valer imediatamente (tempus regit actum), colhendo processos em pleno desenvolvimento embora não afete atos já realizados sob a vigência da lei anterior.

Na lição de Eugênio Pacelli (Curso de processo penal, 16 ª edição, pág. 24) “no que se refere às leis processuais penais no tempo: aplicam-se de imediato, desde a sua vigência, respeitando-se, porém a validade dos atos realizados sob o império da legislação anterior.”

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Ensinou ainda Eugênio Pacelli, naquela obra, pág. 26, que as normas processuais não regulam matéria de fato, mas regras de procedimento, daí por que não tem como pressuposto de aplicação o conhecimento de suas disposições, ressalvadas as garantias processuais do devido processo legal.

É mister lembrar a lição de Fabbrini Mirabete (Processo penal, 1992, paginas 56 e 57) que “tem-se afirmado, por vezes, que a lei nova processual não pode ser aplicada se for prejudicial ao réu em confronto com a lei anterior face ao princípio da irretroatividade da lei mais severa. A doutrina moderna tem rechaçado tal entendimento porque, na hipótese, não há retroatividade já que a lei vai ser aplicada aos atos processuais que correrem a partir do início de sua vigência. A lei processual não está regulando o fato criminoso, esse sim anterior a ela, mas o processo a partir do momento em que ela passa a viger.”

Resumindo, a lei processual brasileira não é retroativa, pois se aplica aos fatos processuais ocorridos durante a sua vigência, permitindo a Constituição Federal a retroatividade desde que não prejudique a coisa julgada. Na verdade, o autor do crime não tem o “direito adquirido” de ser julgado pela lei processual vigente ao tempo em que ele ocorreu, mas apenas que a lei nova respeite as garantias constitucionais do devido processo legal, com os corolários que são explicitados na Carta Constitucional.

Mas, não se pode negar que existem no processo penal normas mistas, ou seja, que abrigam naturezas diversas naturezas diversas, de caráter penal e de caráter processual. Fala-se em normas processuais materiais. Ora, se um preceito legal, embora de direito processual, abriga uma regra penal de direito material, aplica-se a ela os princípios que regem a lei penal, de ultratividade e retroatividade da lei mais benigna.

Guilherme de Souza Nucci ( Código de processo penal comentado, 10ª edição, pág. 71) nos leciona “que normas penais materiais são aquelas que, apesar de estarem no contexto do processo penal, regendo atos praticados pelas partes durante o trâmite processual, têm forte conteúdo de Direito Penal. E referido conteúdo é extraído da sua inter relação com as normas de direito material, isto é, são normalmente institutos mistos, previstos no Código de Processo Penal, mas também no Código Penal, tal como ocorre com a perempção e o perdão e renúncia, a decadência, entre outros. Uma vez que as regras sejam modificadas, quanto a um deles, podem existir reflexos incontestes no campo no Direito Penal.”

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É certo que uma lei nova processual poderá acarretar maiores gravames para o autor do delito, se, por exemplo, revoga o direito à liberdade provisória, ou ainda direito a saídas temporárias.

O instituto da delação premiada é de processo penal e uma nova lei que venha a ser editada somente se aplicaria para o futuro sem eficácia retroativa. Aplica-se o efeito imediato previsto no artigo 2º do CPP. Mas nada impede que a nova lei venha a ressalvar a aplicação dessas regras aos processos pendentes ou aqueles que ainda não foram iniciados embora o crime tenha ocorrido na vigência da lei anterior. É o exemplo do direito colombiano, conforme Mirabete (obra citada, pág. 57) lembrou do que disse Hernando Londoño Jiménez e, na Argentina, consoante o explicitado por Carlos J. Rubianas (Manual de derecho procesal penal, 1985, pág.96), que prega a irretroatividade da lei mais severa por analogia com o art. 2º do Código Penal.

No Brasil, a Lei de Introdução ao CPP assim disciplinou:

Art. 2º À prisão preventiva e à fiança aplicar-se-ão os dispositivos que forem mais favoráveis.

Ainda lembre-se o artigo 3º do CPP:

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“A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.”

A interpretação é o processo lógico que procura estabelecer a vontade da lei, que não é necessariamente a vontade do legislador.

Ora, o artigo 3º do CPP se refere a interpretação extensiva, que permite a ampliação do sentido e alcance da lei. Tal poderá ser o entendimento de nova lei processual que que se entenda mais favorável quanto a aplicação do instituto da delação premiada.

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Rogério Tadeu Romano
Procurador regional da República aposentado, professor de Processo Penal e Direito Penal e advogado. Foto: Arquivo pessoal
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