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Opinião|A descriminalização da droga, a Anvisa e o abismo entre o Judiciário e o Congresso

A Anvisa alega que não pode tirar a cannabis sativa da lista de drogas proibidas devido às convenções internacionais de drogas. Mas incluiu, é bem verdade que por ordem judicial, o THC e o CBD nas listas de drogas lícitas. Ademais, o Brasil pode exercer sua soberania para definir a legalidade de substâncias presentes em convenções internacionais

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convidado
Por Claudia de Lucca Mano

A descriminalização de drogas voltou aos holofotes no Brasil desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou não ser crime a posse, para uso próprio, de 6 plantas fêmeas ou 40g de cannabis. Ao precisar definir as tais quantidades, pelas quais a pessoa é presumidamente usuária e não traficante, ficou evidente o desconforto dos ministros da Corte Superior que, em mais de uma ocasião, apontaram a omissão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para orientar a definição dos critérios objetivos de quantidades diferenciais para tráfico ou uso.

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Durante o recente julgamento, o ministro Luis Fux observou que seria papel da Anvisa, dos órgãos do Poder Executivo ou do próprio Congresso definir quantidades seguras. Destacou a omissão da Agência, do mesmo modo que fez Toffoli, ao comparar a Anvisa a “Pôncio Pilatos”, figura bíblica que lavou as mãos na condenação à morte de Jesus.

O Supremo foi duramente criticado por segmentos sociais opositores da tese de discriminar a posse de drogas e acabou sendo acusado de usurpar a competência legislativa do Congresso Nacional, ou mesmo regulatória, da Anvisa. O argumento não se sustenta, pois sempre que houver uma incursão judicial à Corte é obrigada a decidir. A Constituição Federal deixa claro que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito. Ademais, se o Poder Legislativo não legisla, ou o Poder Executivo deixa de normatizar, o vácuo prejudica a segurança jurídica da população. Mesmo assim, não é possível ignorar que a decisão do Supremo ateou mais combustível na batalha institucional que vem sendo travada entre o Judiciário e o Congresso Nacional.

Como consequência política da retomada do julgamento da maconha, o Congresso Nacional estuda alterar a Constituição Federal, através da PEC 45 - já aprovada no Senado-, para fazer constar como cláusula pétrea (imutável) a criminalização de qualquer quantidade de droga.

O Projeto de Lei 399/15, que poderia nortear o debate do uso medicinal da cannabis, colocando fim às inseguranças jurídicas do tema, está no limbo. A proposta foi aprovada na Câmara, mas não seguiu para o Senado devido a um recurso obstrutor.

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Em paralelo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) também foi provocado a julgar a questão do cânhamo, em processo judicial movido contra a Anvisa, por uma empresa que defende que o cânhamo e suas sementes não deveriam sequer ser considerados drogas ilícitas, dada a possibilidade de manter os níveis de THC em patamares inferiores a 0,3%. O problema, que coloca Executivo, Legislativo e Judiciário em rota de colisão, poderia ser equacionado pela Anvisa.

As discussões sobre legalização ou descriminalização da cannabis sativa para uso adulto ou recreativo, não seriam de competência da Agência, que se limita à primeira vista ao uso medicamentoso, em atenção à saúde da população.

Ocorre, entretanto, que a lista do que é droga lícita ou ilícita é feita pela Anvisa, através da Portaria 344/98. Isso permite definir quais substâncias são medicinais e em quais dosagens, além de identificar que plantas ou substâncias são drogas proibidas, proscritas, lícitas e controladas. A lista é organizada em sub listas com regimes de controle próprios e costuma ser atualizada de 3 a 4 vezes por ano.

Importante frisar que se a Anvisa movimenta a cannabis sativa da atual Lista E, de plantas proscritas, para Lista A, onde está atualmente o THC ou Listas B e C, onde já figura o canabidiol, não seria necessário o Supremo fixar quantidades no escuro. A Agência detém poder para mudar esse cenário completamente e quem sabe até neutralizar eventual decisão do Congresso de criminalização de qualquer quantidade. Se sai da lista proibida, passa a ser medicamento de controle especial, que pode ser prescrito, manipulado e fabricado para pacientes.

A Anvisa alega que não pode tirar a cannabis sativa da lista de drogas proibidas (Lista e Port. 344/98) devido às convenções internacionais de drogas. Mas incluiu, é bem verdade que por ordem judicial, o THC e o CBD nas listas de drogas lícitas. Ademais, o Brasil pode exercer sua soberania para definir a legalidade de substâncias presentes em convenções internacionais.

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Cabe a Anvisa também, por exemplo, definir porcentagens máximas de THC em cânhamo industrial (que tende a girar em torno dos 0,2 ou 0,3%) como pede a ação que tramita no STJ, retirando de determinadas espécies a definição de droga ilícita. O EMPRABA também vem pleiteando, até o momento sem sucesso, autorização para cultivo e pesquisa do cânhamo e suas diversas aplicações industriais. A indústria têxtil por exemplo é grande interessada na planta.

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A Agência pode também autorizar o plantio industrial, conforme Lei 11343/06, bem como a o cultivo e a extração para fins medicinais e científicos. Nada impede, por exemplo, que se mantenha um cadastro simples para auto cultivadores, pessoas físicas, neutralizando a aparente ilegalidade dos pacientes medicinais, hoje sujeitos a prisão por plantar cannabis em casa para extração de óleo, ou mesmo para uso vaporizado com intuito médico.

Imperioso destacar que se a Anvisa decidir sobre as dosagens, tal decisão seria soberana sobre os outros órgãos. Até mesmo o Congresso poderia amargar a declaração da inconstitucionalidade da PEC 45, ao menos no que toca a cannabis.

Isso porque o próprio Supremo já decidiu que não é competência do Congresso legislar sobre liberação de substâncias para uso em medicamentos. Em 2014, a Anvisa proibiu quase todos os emagrecedores chamados anorexígenos, como a anfepramona, mazindol, femproporex, mas em 2017, a Lei Federal 13545/17 tornou a liberá-los no Brasil . Em 2021, a lei foi considerada inconstitucional pelo STF, voltando a valer a proibição de emagrecedores anorexígenos, defendida pela Agência há uma década.

Portanto, a Agência poderia definir qual substância é droga, em qual quantidade e qualidade, estipulando dosagens, concentrações e mecanismos de controle específico, além dos que já existem pela Portaria. 344/98 -desde a importação e fabricação até o paciente final, todo controlado é escriturado e fiscalizado.

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A Agência tem poder e expertise para separar joio de trigo, definir e caracterizar o que é cânhamo industrial, diferenciando as plantas e suas espécies, determinando parâmetros para extratos secos, flores, óleos e demais derivados. É necessário também considerar os demais insumos da planta, como o CBA, Cannabinoid Active System, ou CBG, canabigerol, e ponderar inclusive coloca-los sob regime de suplementos nutricionais, como o próprio CDB canabidiol é tratado nos Estados Unidos.

Diante da complexa interação entre o Judiciário, o Congresso Nacional e a Anvisa sobre a questão da descriminalização da posse de drogas, é evidente que a omissão da Agência tem exacerbado as divergências institucionais. Enquanto o Supremo Tribunal Federal busca suprir lacunas legislativas para proteger direitos individuais, o Congresso debate emendas constitucionais para reafirmar sua competência normativa. Nesse contexto, a Anvisa emerge como peça fundamental para conciliar esses interesses divergentes, utilizando seu poder regulatório para estabelecer critérios claros e seguros, promovendo não apenas a segurança jurídica, mas também a saúde pública. A capacidade da Agência de reclassificar substâncias e estabelecer parâmetros técnicos pode ser decisiva para mitigar conflitos e promover um ambiente normativo mais estável e coerente.

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Claudia de Lucca Mano
Advogada e consultora empresarial, atua desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios. Fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann. Foto: Arquivo pessoal
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