A Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), que está realizando webinares e outros encontros sobre a Reforma do Código Civil, promoveu debate sobre as propostas referentes à capacidade civil.
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O tema da inclusão das pessoas com deficiência mental e intelectual, com a participação dos autores deste artigo e de Alicia Garcia de Solavagione, numa comparação entre o Direito Brasileiro e o Direito Argentino, foi um dos debates com inteiro teor no site da ADFAS.
Panorama Geral.
Pessoas com deficiência (PcD) assumiram papel relevante no âmbito internacional, com o fito de que não fossem estigmatizadas. Buscaram a ressignificação do conceito de deficiência, para que sejam vencidas as barreiras sociais. Sob esta perspectiva, as pessoas com deficiência não devem ser tomadas como enfermas ou doentes, de modo a que não sejam excluídas pelo fato de que não se encaixam no padrão do homo medius.
Hoje essa visão é majoritária, influenciou a legislação e, em particular, a Convenção de Nova Iorque (CNI). O Brasil adaptou-se e, com isso, aprovou a Lei 13.146, de 6 de julho de 2015, então denominada Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), atualmente chamada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LIPD).
No quadro atual, se alguns impedimentos pessoais justificam atenção médica, isso não impede a remoção de barreiras socialmente erguidas e excludentes. Não são as pessoas com deficiência que devem se adaptar à sociedade, mas o contrário. Por isso, há a preocupação desses marcos legais em promover o desenho universal e recomendar a adaptação razoável para vedar a discriminação por motivo de deficiência.
Não se trata apenas de remover escadas, substituindo-as por rampas, no acesso a edifícios. Barreiras legais, que impeçam o acesso inclusivo das pessoas com deficiência, não somente física, mas, também, mental e intelectual, devem ser removidas.
Ao interpretar o art. 12 da CNI, tem-se dito, essencialmente, que pessoas com deficiência fazem jus a tratamento igualitário perante a lei em termos de capacidade. São consideradas discriminatórias as normas que não atribuam às pessoas com deficiência “capacidade legal”, nos termos da CNI.
O Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Comitê da ONU), composto por membros independentes, apresenta preocupação ao avaliar a situação brasileira. Afirmou que, mesmo após a lei brasileira de 2015, mantêm-se medidas substitutivas da vontade. E, também, deixou consignado ser prejudicial que as medidas de tomada de decisão apoiada exijam aprovação judicial.
Críticas à legislação vigente.
Efetivamente há casos em que a substituição da vontade é a única forma de proteção à PcD, ou seja, a curatela. E a retirada do crivo judicial na tomada de decisão apoiada merece o devido cuidado.
Com o abandono de perspectivas médicas, perdeu-se a ética do cuidado. Há variações nas deficiências mentais e intelectuais, de leves a profundas, que têm inegáveis reflexos para a cognição. Cada uma dessas situações merece abordagem distinta. Diversos impedimentos têm um fundo médico bem estabelecido, o que impacta a percepção do mundo. PcD com grau avançado de Alzheimer sequer reconhece os seus filhos ou consorte. PcD com autismo em grau elevado, chamado não verbal, não tem discernimento para escolher apoiadores. E isso não se dá por falta de acesso a equipamentos tecnológicos. Não se trata apenas de remover barreiras sociais para que essas pessoas se expressem.
Pessoas com severos impedimentos cognitivos foram impactadas por legislação que as toma como plenamente capazes de exercer por si próprios todos os atos da vida civil. Tendo como base a Convenção de Nova Iorque, a LIPD alterou o Código Civil em sua redação original, para revogar o dispositivo que estabelecia a graduação da capacidade civil e que considerava como absolutamente incapazes os que, por deficiência mental, não tivessem discernimento para a prática dos atos da vida civil (art. 3º, II) e relativamente incapazes os que tivessem o discernimento reduzido (art. 4º, II).
O Código Civil, após a LIPD, passou a estabelecer que as pessoas com deficiência mental ou intelectual, independentemente do grau da deficiência, mesmo quando não tenham como exprimir sua vontade, devem ter capacidade civil, embora relativa (art. 4º, III).
A LIPD, no seu art. 6º, também estabeleceu que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para casar ou constituir união estável, exercer direitos sexuais e reprodutivos, exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, inclusive como adotante, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
O Comitê da ONU não poupa esforços em criticar a legislação brasileira. Esse esforço só é comparável à omissão desse Comitê em apresentar soluções práticas para que PcD receba o devido cuidado e proteção. Seria de se esperar, por exemplo, que apoiadores sujeitem PcD a exames de alta tecnologia, apresentando-lhes perguntas, para examinar as áreas ativas do cérebro e a partir de imagens presumir suas intenções? A medida, se de fato for eficaz, é absolutamente inviável em países menos favorecidos onde estes exames não estão sequer disponíveis. Por outro lado, poderíamos avaliar se a relação sexual mantida com PcD foi consentida, para só então punir o agressor?
A impraticabilidade da mudança naquilo que diz respeito aos mais vulneráveis faz com que os Tribunais brasileiros continuem a proferir decisões pautadas na ética do cuidado. Já se concluiu, por exemplo, que a curatela é compatível com a representação, em assuntos não só patrimoniais, mas, também, pessoais, como em tratamentos médicos, entre outros.
Essas decisões judiciais são tomadas sob o amparo da CNI, que não pode ser interpretada em tiras. Seu texto determina “salvaguardas” proporcionais e apropriadas às circunstâncias das pessoas com deficiência no exercício da chamada “capacidade legal”. Não se pode admitir que PcD com deficiências mentais e intelectuais graves sejam simplesmente apoiadas, afinal, como escolheriam esses apoiadores já que não têm qualquer discernimento? A curatela e a interdição, sob o crivo do Poder Judiciário, são a solução para esses casos.
O Anteprojeto de Reforma do Código Civil.
Diante desse quadro, o anteprojeto de reforma do Código Civil é uma oportunidade ímpar para promover inclusão, combater preconceitos e, ao mesmo tempo, oferecer o cuidado para com os vulneráveis.
Nesse sentido, o anteprojeto inclui no art. 3º do CC, como absolutamente incapazes, aqueles que por nenhum meio possam expressar sua vontade, em caráter temporário ou permanente. Essa proposta do anteprojeto corrige o evidente equívoco de tratar como relativamente capazes pessoas que não têm nenhum meio de expressar sua vontade.
Mas, a seguir, propõe-se a revogação do dispositivo que classifica como relativamente capazes as pessoas que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade (art. 4º, III do CC vigente), portanto, atribuindo-lhe o exercício da capacidade civil plena. É proposto que somente aqueles cuja autonomia estiver prejudicada por redução de discernimento, que não constitua deficiência, enquanto perdurar esse estado, sejam havidos como relativamente capazes (art. 4º, II do anteprojeto). A expressão “que não constitua deficiência” deveria ser excluída do texto.
A seguir, o anteprojeto propõe no parágrafo único do mesmo art. 4º que as pessoas com deficiência mental ou intelectual tenham assegurado o direito ao exercício de sua capacidade civil em igualdade de condições com as demais pessoas, observando-se, quanto aos apoios e às salvaguardas de que eventualmente necessitarem para o pleno exercício dessa capacidade, inclusive o disposto no art. 1.783.
A redação proposta para o art. 1.783-B indica que a tomada de decisão apoiada poderia ser requerida judicialmente ou perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN). O art. 1.783-D, por sua vez, propõe-se que a medida possa ser revogada unilateralmente pela pessoa com deficiência. Atende-se o pleito do Comitê da ONU, com desjudicialização da medida de apoio, mas aferir a vontade do declarante é função essencialmente realizada por tabeliães, e não por registradores. Seria razoável fazer com que, lavrada a tomada de decisão apoiada perante o Tabelionato de Notas, esta fosse anotada no RCPN.
A redação proposta para o art. 1.550, CC, reconhece a anulabilidade do casamento das pessoas referidas no inciso II do art. 4º do CC que não obtiveram o auxílio de apoiadores, quando assim o tiverem desejado. Mas, recordemos que este dispositivo não se aplica à PcD. Essas propostas, mesmo que corrigida a proposta do inciso II do art. 4º, expõe pessoas vulneráveis a terceiros que queiram prejudicá-las.
Poder-se-ia pensar que o anteprojeto estaria seguindo a CNI, que determina que as pessoas com deficiência devem gozar de “capacidade legal” em igualdade de condições com as demais pessoas (art. 12, 2). No entanto, deve-se dar a devida atenção a toda a Convenção, que determina “salvaguardas” proporcionais e apropriadas às circunstâncias das pessoas com deficiência no exercício da chamada “capacidade legal”. Seria proporcional e apropriado à proteção da pessoa com deficiência mental e intelectual com discernimento reduzido considerá-la plenamente capaz? E retirar a obrigatoriedade de assistência de responsável por desconsiderá-la relativamente incapaz? E possibilitar a escolha de apoiadores em Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, que tem a competência de registrar e não de formular a vontade das partes, formulação que deveria caber ao Tabelionato de Notas? E revogar o apoio por mero requerimento ao RCPN? E possibilitar o casamento, inclusive com livre escolha de regime de bens, sujeitando-a ao chamado “golpe do baú”, com a presença exclusiva do Oficial do RCPN?
Todas essas perguntas merecem respostas do Senado Federal, que será a primeira casa legislativa a examinar o futuro projeto de lei.
O Congresso Nacional, em todas as fases de futura reforma do Código Civil, precisa ouvir a todos, inclusive, os médicos especializados. Afinal, ninguém está isento de, em algum momento da vida, vir a padecer de deficiência incapacitante.
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