Nos últimos meses o debate sobre os limites do telemarketing ativo ganhou destaque, após a superveniência de três importantes decisões setoriais, que limitaram sensivelmente o exercício dessa atividade econômica.
A primeira delas, foi o Ato 10.413 de dezembro de 2021, por meio do qual a ANATEL estabeleceu o código 0303 para as chamadas de telemarketing ativo, possibilitando ao consumidor a prévia identificação do chamador[1].
Em 6 de junho de 2022, foi o Despacho Decisório n.º 160/2022/COGE/SCO da ANATEL[2]. O objetivo da medida cautelar é o controle de ligações realizadas por robôs (as chamadas robocalls) "com desligamento pelo originador em prazo de até 3 segundos" (art. 2°). Para tanto, a agência reguladora impôs diversas obrigações às prestadoras de serviço de telecomunicações, tais como "o bloqueio das chamadas que não utilizem recursos de numeração atribuídos pela Anatel" (art. 1º). De acordo com informações da ANATEL, após as suas iniciativas, houve consistente e constante no volume de chamadas curtas geradas nas redes dessas prestadoras. Apenas na semana de 10 a 16 de julho, foi constatada uma redução de 55% das chamadas curtas[3].
O SENACON, porém, antes de aferir de forma efetiva os efeitos das medidas anteriores, no dia 18 de julho, no bojo do Processo Administrativo n.º: 08198.018100/2022-58, decretou medida cautelar determinando a suspensão dos serviços de telemarketing ativo em todo o país, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00. A decisão está amparada na premissa de que as chamadas de telemarketing realizadas "sem a expressa autorização do consumidor acerca desse tipo de abordagem" se enquadrariam no conceito de telemarketing abusivo.
Entidades que representam os profissionais de telemarketing se mobilizaram no sentido de suspender os efeitos da decisão do SENACON. Até o momento, foram impetrados três Mandados de Segurança (autos n.º 1046264-09.2022.4.01.3400, em trâmite perante na 16ª Vara Federal Cível da Secretaria de Justiça do DF, impetrado pela Federação Nacional de Call Center, Instalação e Manutenção de Infraestrutura de Redes de Telecomunicações e de Informática-FENINFRA; autos n.º 1046654-76.2022.4.01.3400, em trâmite perante a 16ª Vara Federal Cível da Secretaria de Justiça do DF, impetrado em 21/07/2022 pela Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Telecomunicações e Operadores de Mesas Telefônicas-Fenattel; e autos n.º 1046690-21.2022.4.01.3400, em trâmite perante a 5ª Vara Federal Cível da Secretaria de Justiça do DF, impetrado em 21/07/2022 pela ATENTO BRASIL S.A). A tônica que permeia os Mandados de Segurança é de que, se produzidos os efeitos da decisão do SENACON haverá desemprego massivo dos profissionais desse setor econômico, sobretudo num momento crítico de retomada da economia e de instabilidade causada pela Pandemia Covid -19.
Longe de pretender esgotar o tema, estabelecer qualquer crítica à iniciativa do SENACON no sentido de proteger a tranquilidade do consumidor ou de realizar uma análise pormenorizada de todas as repercussões jurídicas, econômicas e sociais derivadas da suspensão dos serviços de telemarketing ativo, neste espaço, faremos apenas alguns comentários a respeito da compatibilização da fundamentação da decisão em questão com as regras de direito concorrencial e os ditames da LGPG.
Em razão da sua aplicação prática e cotidiana, naturalmente, as regras de proteção ao consumidor acabam sendo mais difundidas do que outras leis. A popularidade do diploma consumerista conduz à convicção distorcida de que o direito consumerista ocuparia uma posição de supremacia em relação aos demais princípios da ordem econômica. Porém, a leitura atenta do art. 170 da CF permite a compreensão de que não há hierarquia valorativa em relação aos princípios da defesa do consumidor[4] e da livre iniciativa[5], os quais devem se harmonizar, também, com a proteção de dados[6] (inserido no rol de direitos e garantias fundamentais pela EC 115/22). Tratam-se de garantias constitucionais que precisam dialogar entre si, visando à melhoria do bem-estar da sociedade[7].
O primeiro ponto de atenção se vota às possíveis repercussões em relação à esfera da livre concorrência. É consensual a concepção de que o legislador colocou o bem-estar do consumidor como principal objetivo da legislação antitruste[8]. Nas palavras de Nelson Nery Jr e Georges Abboud: "o princípio da concorrência é assumido como garantia-institucional da ordem econômica. A projeção no mercado das diferentes e autônomas iniciativas é tida como a forma mais adequada de racionalização econômica, porque, em razão da diversidade e competitividade de ofertas, cria-se terreno favorável para um econômico e social em benefício dos cidadãos"[9].
Em artigo específico sobre o tema, o ex-Presidente do CADE, Alexandre Barreto de Souza, destacou que o mercado "é em sua essência um grande sistema de cooperação, em que produtores e consumidores, querendo maximizar os respectivos ganhos, colaboram entre si (...)"[10]. De fato, o telemarketing é uma das formas que as empresas interagem com os consumidores. Nessa modalidade de contato não se realiza tão somente a oferta de produtos e serviços. Há, também, coleta de informações, o que é essencial para que as empresas conheçam melhor os desejos e necessidades dos consumidores, estabeleçam as conexões necessárias e, com isso, sejam mais assertivas no posicionamento dos produtos, garantindo melhores preços, qualidade, liberdade de escolha, constante inovação e aperfeiçoamento.
Com amparo nessa reflexão, compreende-se que a decisão do SENACON pode significar uma ruptura do "sistema de cooperação" atualmente existente, abalando as estruturas da relação entre consumidor-fornecedor que fomentam o mercado. Isso, porque as organizações estão impedidas de utilizar um importante meio de divulgação de novos produtos e serviços a todos os consumidores (notadamente àqueles que não manifestarem consentimento expresso no recebimento de chamadas de telemarketing), refletindo diretamente nos preços e na qualidade. Portanto, a pretexto de evitar "dano à tranquilidade do consumidor", por via transversa, o SENACON poderá prejudicá-lo.
Em relação à Lei Geral de Proteção de Dados, utilizada como fundamento pelo SENACON para a suspensão das atividades de telemarketing ativo, importante registrar que as organizações não estão legalmente obrigadas a orientar suas práticas somente mediante o consentimento dos titulares de dados pessoais.
A LGPD estabelece a necessidade de que toda operação conceituada como "tratamento de dados pessoais"[11] deve se enquadrar em uma das dez hipóteses taxativas (bases legais), estabelecidas no art. 7º. Existe uma ideia (absolutamente equivocada) de que o consentimento ocuparia uma posição de supremacia em relação às demais hipóteses que autorizam o tratamento de dados pessoais. Existe, sim, uma preferência casuística, mas não hierarquia entre as bases legais, cabendo ao Controlador a escolha daquela que for mais adequada, de acordo com o contexto e as finalidades de tratamento.
O interesse legítimo (art. 7º, IX), por exemplo, se afigura como importante autorização para o tratamento de dados pessoais em situações em que não é possível obter o consentimento, um a um, dos titulares de dados pessoais com quem determinada organização se relaciona. O uso da base legal do interesse legítimo importa que a ação de marketing: (i) atenda às expectativas legítimas do titular e (ii) respeite, sobretudo, os direitos e liberdades fundamentais desse indivíduo e, sempre, a opção de saída (opt out). Os dados tratados por essa base legal devem ser estritamente necessários e não excessivos [12] e a relação de tratamento deve ser transparente[13].
O que se pretende evidenciar é que, ainda nos dias de hoje, com a LGPD em vigor, desde que observadas as suas regras, é lícito às organizações o desenvolvimento de estratégias comerciais mediante a realização de ações de marketing a partir do tratamento de dados pessoais, ainda que por outra base legal que não o consentimento.
Importante registrar que de forma alguma se pretende retirar a legitimidade do pleito do consumidor que se sente incomodado. Apenas cabe uma reflexão sobre a forma como foram estabelecidas restrições ao telemarketing e a existência de outras medidas para controle de eventuais excessos.
Os esforços deveriam se voltar à proteção do direito do consumidor que manifesta o desejo de não ser abordado por ações de telemarketing (opt out), por exemplo, com o fortalecimento do sistema de bloqueio de ligações à disposição dos consumidores, o chamado "não me perturbe". O desatendimento a essa manifestação da vontade do consumidor, sim, deveria ser objeto de atenção pelo SENACON e agências reguladoras setoriais em conjunto (i.e., ANATEL, CADE e ANPD). A suspensão das atividades de telemarketing ativo, de forma irrestrita ao consumidor reticente, causa mais prejuízos do que benefícios à sociedade.
*Evelyn Weck, advogada na área de Telecom do Escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço & Lobo Advogados. Bacharel em Direito pela PUC/PR. Pós-graduada em Gestão de Direito Empresarial pela FAE Business School. Pós-graduanda em Direito Digital e Proteção de Dados pelo Instituto de Desenvolvimento e Pesquisa - IDP. Especialista em Privacidade e Proteção de Dados: Teoria e Prática - Data Privacy Brasil
[1] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/ato-n-10.413-de-24-de-novembro-de-2021-366041216. Acesso em 10/08/2022.
[2] https://sei.anatel.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?eEP-wqk1skrd8hSlk5Z3rN4EVg9uLJqrLYJw_9INcO51bezP-t06vzsGPbkTj2UKReZzc0X0KcFtlabLTRxdz4SDUri39RgN4645ZXiL7k1MfW9-Xvny6r6CI9tPUy5F. Acesso em 08/08/2022.
[3] https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/releases/anatel-aprimora-cautelar-contra-telemarketing-abusivo.
[4] "Art. 5º XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor".
[5] "Art. 170: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor".
[6] "Art. 5º, LXXIX CF/88: é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais. (inserido pela EC 115/22)".
[7] Maiolino, Isabela; Marques, Leonardo Albuquerque e Timm, Luciano Benetti. Lei Geral de Proteção de dados (Lei 13.709/2018): a caminho da efetividade: contribuições para a implementação da LGPD /obra coletiva; Ricardo Villas Bôas Cueva, Danilo Doneda, Laura Schertel Mendes, coordenadores. - São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 99 - g.n.
[8] Ana Paula Martinez. A Defesa dos Interesses dos Consumidores pelo Direito da Concorrência. Revista do IBRAC - Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional | vol. 11/2004 | p. 67 - 99 | Jan / 2004 | DTR\2011\2006
[9] Nery Junior, Nelson, Direito constitucional brasileiro: Curso Completo / Nelson Nery Junior, Georges Abboud. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, pg. 640/641.
[10] Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/protecao-de-dados-e-defesa-da-concorrencia-16042021. Acesso em 27/07/2022.
[11] À luz do art. 5º, X da LGPD, tratamento de dados engloba as seguintes operações: "toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração".
[12] Princípio da necessidade: contempla o direito à limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização da finalidade almejada, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos (art. 6º, III, da LGPD).
[13] Princípio da transparência: as informações devem ser claras, precisas e facilmente acessíveis (art. 6º, VI da LGPD).
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