No dia 26 de abril de 2023, foi concluído o Circuito Deliberativo nº 09/2023 pelo Conselho Diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que aprovou a minuta de resolução que regulamenta o processo de comunicação de incidentes de segurança com dados pessoais, com a determinação de abertura de consulta pública e realização de audiências públicas sobre o tema. A deliberação foi tomada com base no voto nº 08/2023 do Diretor Joacil Basílio Rael, que, no item 4.81, determinava "a realização da Audiência Pública dividida em 2 (dois) dias".
Na sequência, no dia 4 de maio de 2023, a Coordenação-Geral de Normatização (CGN), responsável pela organização e execução das atividades necessárias à realização de consulta e audiência públicas, convocou audiência pública, por meio de informativo disponibilizado no sítio eletrônico da ANPD, para o dia 23 de maio de 2023, com abertura de inscrições para manifestações orais entre os dias 4 e 12 de maio de 2023.
A convocação de audiência pública pela CGN, estipulada para somente um único dia, contrariou expressamente a decisão tomada pelo Conselho Diretor no Circuito Deliberativo nº 09/2023 - que, diga-se de passagem, foi aprovada unanimemente por todos os diretores, na forma do voto do Diretor Joacil Basílio Rael.
Essa conduta, por mais que possa parecer mera inconsistência formal, resulta em três grandes problemas:
Primeiro: viola frontalmente o Regimento Interno da ANPD.
O artigo 16 do Regimento Interno da ANPD prevê as competências da Coordenação-Geral de Normatização. Dentre elas, contudo, não está a de definir o prazo das audiências públicas a seu bel prazer. Pelo contrário: o inciso V de respectivo dispositivo legal estabelece que cabe à CGN "promover as consultas e audiências públicas determinadas pelo Conselho Diretor".
Adicionalmente, levando-se em consideração que o Conselho Diretor é o órgão máximo da ANPD, consoante o previsto no art. 3º do Regimento Interno, a decisão por ele tomada jamais poderia ser suprida por uma deliberação administrativa da Coordenação-Geral de Normatização.
Segundo: põe em xeque a autoridade das decisões do Conselho Diretor, algo que, como exemplo para o mercado, é desastroso.
Ao estabelecer a realização de audiência pública em somente um dia, muito embora a decisão tomada pelo Conselho Diretor tenha manifestamente indicado a divisão da audiência em duas datas distintas, a Coordenação-Geral de Normatização criou um precedente ruim, que permitirá diversas ilações quanto à necessidade de cumprimento às decisões do Conselho Diretor.
Ora, se nem mesmo os próprios órgãos internos na ANPD observam as decisões do Conselho Diretor, por que os agentes regulados deveriam se ver obrigados a cumpri-las? Sim, a não observância de uma ordem do Conselho Diretor causaria a penalização do agente de tratamento, mas por qual razão o mesmo tratamento não é conferido quando internamente a ordem é descumprida? A máxima dúvida de "quem regula o regulador?" parece, infelizmente, muito aplicável ao caso concreto.
Terceiro: mina a participação popular, justamente o cerne da função de uma audiência pública.
Sob um primeiro aspecto, a redução de dois dias para uma única data impede que um número maior de pessoas participe da audiência, seja por criar um limite máximo de indivíduos que conseguirá se manifestar, seja por dificultar sobremaneira a participação de quem já estava com a agenda lotada para aquela única data.
É óbvio que a ANPD não tem que - e muito menos deve - organizar a sua agenda de acordo com a agenda de eventuais participantes. Ainda assim, eliminar um dia de audiência pública acaba tendo o potencial de impedir a participação de um manifestante que poderia participar em outra data.
Sob um segundo aspecto, a redução também impacta severamente o tempo concedido a cada manifestante, que, no caso concreto, foi limitado a 7 minutos de fala por participante. O resultado é evidente, como se pode observar da audiência pública, cuja gravação está disponível na internet: os oradores que tinham vários pontos relevantes de contribuição precisaram falar apressadamente, em velocidade que dificultava a própria compreensão e acompanhamento do argumento, tendo que inclusive deixar de apresentar algumas contribuições em razão do tempo.
Caso a decisão do Conselho Diretor tivesse sido respeitada, a divisão da audiência em duas datas permitiria que cada orador pudesse contribuir por 15 minutos, engrandecendo substancialmente a sua contribuição e garantindo efetividade ao objetivo central das audiências públicas.
Curioso notar que a Coordenação-Geral de Normatização, no intuito de tentar justificar sua decisão, na data anterior à audiência pública fez nova postagem no sítio eletrônico da ANPD anunciando que a audiência seria realizada em data única em razão do número de pessoas inscritas para manifestação oral.
No entanto, a decisão de realizar a audiência em somente um dia já havia sido tomada no início de maio, bem antes da data da sua realização e do término das inscrições para manifestações orais. Sem contar que a divisão da audiência em duas datas seria benéfica exatamente em razão do número de inscritos, propiciando maior tempo de fala a quem assim desejasse fazer uso de respectivo período.
Não há dúvidas que a ANPD já é, e certamente continuará sendo, um dos órgãos reguladores mais importantes do Brasil, haja vista que inexiste atividade econômica que não dependa da realização de atividades de tratamento de dados pessoais. Por isso mesmo, parece útil que os acontecimentos recentes levem a uma reflexão acerca da necessidade de observância estrita às decisões da ANPD pelo próprio órgão, sob pena de surgirem questionamentos a respeito da sua autoridade e legitimidade. Afinal, a mencionada inobservância à decisão do Conselho Diretor desafia o próprio ditado popular: manda quem pode, mas obedece quem mesmo?
*Felipe Palhares é sócio das áreas de Proteção de Dados e Cybersecurity e de Blockchain e Inovação do BMA Advogados
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