Um novo vocabulário circula no mundo dos esportes, com expressões como sport bet, fantasy games. Os anúncios estão presentes não somente nas placas reservadas às propagandas em estádios de futebol, quadras de basquete e outras atividades desportivas, mas também em anúncios na televisão. Mas o que isto significa?
Basicamente estas expressões se referem a uma nova modalidade esportiva ainda não regulamentada no Brasil e que enseja preocupações jurídicas e culturais. Há, pelos menos, duas interpretações acerca do que consiste essa prática esportiva.
No momento, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 2.796/2021 que cria o marco legal para a indústria de jogos eletrônicos e para os jogos de fantasia — para este artigo utiliza-se a expressão bets/fantasy games. Há, no entanto, uma diferença entre essas duas modalidades esportivas. Jogos eletrônicos referem-se aos videogames, que são caracterizados como jogos de habilidades e estratégias; enquanto os jogos de fantasia têm características que também os aproximam de jogos de apostas. A tentativa de usar o vocabulário “jogos de fantasia” ou fantasy games visa justamente desassociá-los da realidade das apostas.
Em termos de elaboração legislativa, a inclusão dos bets ou fantasy games no PL nº 2.796/2021 se tornou um verdadeiro “jabuti”, expressão informal que se refere a um entrave polêmico que atrasa aprovações de leis.
Aqueles que defendem a inclusão dos bets/fantasy games, no referido PL, entendem que estes são sobretudo jogos de estratégia, em que os participantes selecionam um elenco de atletas reais para a formação de times esportivos fictícios, estudam sobre a performance dos jogadores, dados estatísticos de gols e cartões de infrações, investem um orçamento sobre o time, em uma plataforma virtual, com o objetivo de vitórias simbólicas e ganhos financeiros.
O jogo se complexifica com os aplicativos desse esporte organizando verdadeiras ligas de competição. Os jogadores dos bets/fantasy games não são chamados de apostadores porque não respondem apenas à sorte. São, na verdade, estrategistas, com preparação técnica, a partir de estudos estatísticos e analíticos que os levam a vencer.
De outro, estão aqueles que percebem os bets/fantasy games, como jogos de aposta ou de azar. Estas modalidades são diferentes entre si. Jogos de apostas são admitidos no Brasil desde a Lei nº 13.756, de 2018, a qual dispõe “sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), sobre a destinação do produto da arrecadação das loterias e sobre a promoção comercial e a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa”. No entanto, esta lei requer regulamentação urgente. Os jogos de azar, por sua vez, são considerados, até o momento, contravenção penal no país. Jogos de azar são proibidos no Brasil, desde a publicação do Decreto Lei nº 9215/46, sob argumentos morais (conforme preâmbulo da referida legislação) e também por serem associados a práticas criminosas e de evasão fiscal.
Independentemente de serem jogos que exijam habilidades específicas dos jogadores, de apostas ou de azar, o fato é que os bets/fantasy games consistem realmente em uma cultura que está se aproximando de modalidades esportivas populares e redimensionando a maneira como o público lida com elas.
Já são inúmeras plataformas atuantes no Brasil e que cativam torcedores e apostadores, tanto para o entretenimento, quanto na esperança de vitórias e ganhos financeiros. Segundo reportagem do jornal especializado “Games Magazine Brasil”, a Associação Brasileira de Fantasy Sports (ABFS) informa que o mercado de bets/fantasy games na América do Sul movimentou US$ 1,4 bilhões no ano de 2022, sendo o Brasil o país de maior investimento [1].
A regra não é clara, mas, até o momento, o que não é regulamentado corre com o jogo. Esta é a realidade do que se verifica na cultura esportiva no Brasil: a presença, gostemos ou não, dos bets/fantasy games. Sem dúvida, é uma prática que favorece não apenas uma nova cultura desportiva ou a economia criativa, mas o mercado financeiro.
Importa, para este artigo, pensar na relação dos direitos culturais que atravessam a discussão. Primeiro, recorda-se que os direitos culturais permeiam o ordenamento jurídico e são transversais às políticas públicas, sendo legítimo pensar a legislação dos jogos eletrônicos sob o seu enfoque.
Em interpretação mais conceitual, os direitos culturais referem-se às artes, à memória e ao fluxo dos saberes e fazeres (CUNHA FILHO, 2018) [2]. São também instrumentos que visam à dignidade humana e, portanto, os direitos humanos. Pensar os esportes e jogos sob esse enfoque, implica ir além da dimensão econômica, mas compreendê-los como práticas culturais de expressão simbólica e diálogo.
As políticas culturais, por sua vez, direcionam-se a atender os direitos culturais em sua dimensão de direitos humanos. Nem toda manifestação cultural converge para esta dimensão positiva, podendo algumas práticas, inclusive, ser-lhes contrárias e prejudiciais à dignidade humana. Os bets/fantasy games, até o momento, tem se mostrado uma cultura polêmica em relação aos seus benefícios.
Percebe-se que o mercado de empresas de apostas, em que se enquadram os bets/fantasy games, se apropria dos esportes com forte relação simbólica à cultura brasileira. Está no cotidiano do público nacional a cultura do basquete, do videogame e, sobretudo, do futebol. A esse respeito são úteis dados estatísticos, que oferecem segurança de retornos financeiros ao investidor das casas de apostas.
Conforme reportagem da CNN, em 2022, o faturamento dos cinco maiores clubes de futebol do país somaram R$ 3,9 bilhões, valor acima do faturamento do conjunto dos demais times brasileiros [3]. Em relação aos videogames, o Sebrae informa que, em 2021, a receita brasileira alcançou com jogos de videogame a cifra de US$ 1,4 bilhão. Sob essa consideração, já é possível pensar que a aplicação nos bets/fantasy games tem um mercado consumidor potencial capaz de garantir investimentos.
O potencial de uma economia criativa associada ao mercado de esportes e jogos, eletrônicos ou não, é imenso. Pode-se pensar em diferentes mercados adicionais relacionados à economia criativa que se somam aos bets/fantasy games, como os da moda, do audiovisual e do design.
Como exemplo de direitos culturais que dialogam com os bets/fantasy games estão direitos da personalidade (direito de imagem dos jogadores reais que servem de token das apostas); direitos de propriedade intelectual (marcas, direitos autorais, desenho industrial, softwares), direitos da proteção de dados.
Aliados a estes estão os direitos do consumidor e tributários, que não se relacionam tão imediatamente aos direitos culturais, mas, ouso dizer, que a eles importam, na medida em que visam à dignidade humana e ao bem comum, visto que direitos tributários garantem o orçamento público.
Sem regulamentação, o público jogador, consumidor ou apostador ocupa posição de vulnerabilidade perante as plataformas de bets/fantasy games. Isto porque a maioria delas encontra-se fora do país, em paraísos fiscais, sem que possam ser processadas e tributadas. Da mesma forma, o Estado se torna tanto isento da responsabilidade da disciplina jurídica das relações contratuais entre os particulares, quanto indiferente à fonte de tributação possível de um mercado bilionário.
Agrega-se, por fim, a questão sanitária. A Classificação Internacional de Doenças (CID) classifica o “transtorno dos jogos eletrônicos”, como doença (CID-11). A esse respeito, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda aos Estados “planejar estratégias de saúde pública e monitorar tendências de transtornos” [4].
Considerando-se os direitos humanos de maneira ampla, importa também ao Estado atender grupos ainda mais vulneráveis, como as crianças e adolescentes. Sem a devida regulamentação, a interação deste público com as plataformas de bets/fantasy games é facilitada, tornando-os alvos fáceis para um tipo de entretenimento que não se basta em habilidades e estratégias, mas enseja responsabilidades, as quais não são plenamente capazes de assumir; e consequências capazes de afetar a sua saúde.
Pode-se dizer que a regra dessa nova cultura esportiva não é clara, mas as relações de poder são. Em um país rico em diversidade cultural e com a dimensão do público consumidor, quem ganha, mais uma vez, não é o cidadão, o consumidor, a cultura brasileira ou o poder público. Os bets/fantasy games parecem responder mais a uma cultura econômica neoliberal, com forte tendência a explorar a vulnerabilidade de seu consumidor jogador. Além da prática de especulação, fuga fiscal, traz risco à saúde financeira e mental, na medida em que incita além do entretenimento, o endividamento individual e o vício. É, portanto, uma preocupação de direitos culturais.
*Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo, advogada preventiva nas áreas de Artes, Cultura e Propriedade Intelectual, servidora pública no Itamaraty, cedida ao Ministério da Cultura, pesquisadora em Direitos Culturais e escritora de literatura
Notas
[1] Disponível em: https://www.gamesbras.com/esports/2023/5/3/febre-dos-fantasy-sports-no-brasil-impulsiona-crescimento-do-segmento-na-america-latina-37071.html
[2] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: Fundamentos e finalidades. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2018.
[3]Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/levantamento-mostra-ranking-de-faturamento-dos-clubes-brasileiros-veja-lista/
[4]Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/78932-oms-esclarece-d%C3%BAvidas-sobre-v%C3%ADcio-em-video-games
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.