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Opinião | A nova PEC da Segurança Pública: um avanço ou um retrocesso na autonomia dos Estados?

O combate ao crime passa menos por uma expansão de poderes centralizados e mais por uma valorização da autonomia e pela criação de políticas públicas que permitam uma atuação coordenada e eficiente, respeitando as diferenças regionais e as competências dos entes locais. Afinal, segurança pública eficaz deve combinar eficiência, proximidade com a população e respeito à organização federativa que constitui nosso Estado

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convidado
Por Thiago Lacerda Nobre
Atualização:

A proposta de Emenda Constitucional (PEC) recentemente apresentada sobre segurança pública promete reformular o sistema de segurança brasileiro. Ao ampliar o poder da União para legislar e coordenar a segurança pública em todo o território nacional, a proposta parece seguir a premissa de que a centralização será a resposta para os desafios enfrentados pelos Estados. Contudo, em uma análise técnica, observa-se que a centralização não apenas ameaça o equilíbrio do pacto federativo, mas pode também resultar em um retrocesso significativo em termos de eficiência e respeito às especificidades regionais. Importante frisar que esta não é uma avaliação política da PEC, mas uma análise sob as óticas jurídica, social e de segurança pública, considerando ainda as implicações no combate ao crime transnacional, um fenômeno crescente na América do Sul.

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Centralização que Ameaça o Federalismo e a Eficiência

A Constituição de 1988 consagra o princípio federativo e a autonomia dos Estados como pilares do Estado brasileiro. O pacto federativo implica que Estados e Municípios mantenham competências próprias para que possam responder de forma direta e eficaz às necessidades locais. Em matéria de segurança pública, essa descentralização é essencial. São os Estados, afinal, que conhecem as realidades de seus territórios, das favelas urbanas aos rincões nas fronteiras. A nova PEC, ao atribuir à União a coordenação do sistema de segurança pública e a imposição de diretrizes obrigatórias aos entes federados, subverte essa estrutura e dilui a capacidade de resposta local.

Ao propor que a União coordene o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), a PEC busca uma atuação padronizada em todo o Brasil. A medida, embora possa ser bem-intencionada, desconsidera que as realidades de São Paulo, Amazonas e Rio Grande do Sul, por exemplo, são completamente distintas. A centralização pode gerar uma uniformidade normativa que, na prática, apenas ampliará a burocracia e distanciará o sistema de segurança dos problemas concretos de cada região. Em vez de fortalecer as ações locais, a União passa a ditar políticas que talvez não reflitam as demandas e particularidades dos Estados.

O Problema da “Polícia Ostensiva Federal”

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Um dos pontos mais polêmicos da PEC é a criação de uma “Polícia Ostensiva Federal”, que substituiria a atual Polícia Rodoviária Federal. A nova corporação teria competência ampliada, abrangendo ferrovias e hidrovias federais e podendo ser acionada em emergências para apoiar as forças estaduais. Na prática, isso significa que a União estaria assumindo funções de policiamento ostensivo, que tradicionalmente são responsabilidade dos Estados.

Embora o combate ao crime organizado e transnacional, como o tráfico de drogas e armas, seja uma questão urgente, expandir as atribuições federais pode não ser o caminho ideal. Um exemplo prático é o controle de fronteiras, onde a atuação integrada entre a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e as forças estaduais já demonstra eficácia, embora exija recursos e investimentos. No entanto, com a criação de uma nova força ostensiva federal, há o risco de que essas operações sejam centralizadas e de que a cooperação com os Estados fique mais distante.

Além disso, como estudioso de relações internacionais e do crime organizado transnacional na América do Sul, vemos que a cooperação entre forças estaduais e federais é essencial para enfrentar desafios que ultrapassam fronteiras. A fragmentação ou a duplicação de esforços pode resultar em um retrocesso. A criação da Polícia Ostensiva Federal não oferece garantias reais de que o crime transnacional será melhor combatido, principalmente porque ele depende de redes integradas de inteligência, recursos tecnológicos e cooperação entre agências.

A Criação do Fundo Nacional de Segurança Pública: Uma Solução com Lacunas

A PEC também prevê a criação de um fundo nacional para a segurança pública e o sistema penitenciário, vedando o contingenciamento dos recursos. Na teoria, a medida é positiva, já que reconhece a necessidade de financiamento contínuo para enfrentar o problema. Na prática, porém, o fundo pode se tornar uma fonte insuficiente e mal gerida. A falta de regulamentação clara sobre a origem e a aplicação dos recursos, prevista para uma lei infraconstitucional, deixa brechas que podem comprometer a efetividade da proposta.

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Esse fundo seria coordenado pela União, o que levanta mais uma vez o problema da centralização. Em vez de serem alocados diretamente aos Estados, que têm a expertise e o conhecimento das necessidades locais, os recursos poderiam ser distribuídos segundo diretrizes gerais de Brasília. A questão orçamentária, então, não apenas mantém os problemas atuais como os agrava: os recursos chegam aos Estados com atraso e com regras que nem sempre refletem as realidades locais. O exemplo da educação, em que fundos centralizados nem sempre atendem às demandas regionais, mostra que essa é uma solução ineficiente.

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O Perigo do Precedente e a Proibição de Retrocesso Social

Uma mudança estrutural como essa abre espaço para questionamentos quanto à sua constitucionalidade. A centralização exacerbada de poder contraria o princípio da subsidiariedade e o pacto federativo, ambos consagrados pela Constituição. A proposta ignora ainda o princípio da proibição de retrocesso social, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como um freio para medidas que diminuam a eficácia de políticas já implementadas.

A segurança pública, como direito fundamental, exige garantias práticas para os cidadãos. Se a centralização proposta pela PEC resultar em ineficiência na execução das políticas, o cidadão será o maior prejudicado. O combate à violência e ao crime organizado não depende necessariamente de uma centralização, mas sim de uma alocação eficiente de recursos, da integração entre os entes federativos e do fortalecimento das forças de segurança locais.

Conclusão: Um Caminho de Retrocesso?

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Embora a PEC traga uma série de inovações, o custo de sua implementação é alto e seus benefícios são questionáveis. Em vez de investir em uma centralização que ameaça o equilíbrio do pacto federativo, o governo federal poderia aprimorar as estruturas existentes e reforçar os mecanismos de cooperação entre os entes.

O combate ao crime organizado e transnacional, a segurança nas fronteiras e o controle da violência urbana são desafios reais que requerem uma abordagem inteligente e integrada. Mas essa integração não precisa significar a subordinação dos Estados à União, muito menos o enfraquecimento da autonomia estadual em um tema tão sensível quanto a segurança pública.

A verdadeira solução para a segurança no Brasil passa pela valorização das polícias locais, pela destinação eficiente de recursos e por políticas públicas que respeitem as especificidades de cada Estado. A PEC, ao propor um modelo centralizador e de alcance duvidoso, pode não trazer os avanços necessários e, pior, abrir um precedente perigoso para a diluição da autonomia dos entes federativos.

A reflexão que propomos é que o combate ao crime, inclusive ao crime transnacional, passa menos por uma expansão de poderes centralizados e mais por uma valorização da autonomia e pela criação de políticas públicas que permitam uma atuação coordenada e eficiente, respeitando as diferenças regionais e as competências dos entes locais. Afinal, segurança pública eficaz deve combinar eficiência, proximidade com a população e respeito à organização federativa que constitui nosso Estado.

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Thiago Lacerda Nobre
Procurador da República em São Paulo, mestrando em Relações Internacionais pela UFABC, especialista em Direito pela UNB, foi professor de Direito Constitucional. Autor de livros e artigos jurídicos. Foto: Ascom/MPF-SP
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