Foto do(a) blog

Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Opinião | A PEC dos Estupradores e a naturalização da pedofilia no Brasil

Obrigar vítimas de um estupro, ou que se encontrem em situação de perigo de vida, a serem mães acarreta a revitimização de meninas e de mulheres. E forçá-las a levar uma gestação indesejada adiante traz impactos psicológicos graves e, muitas vezes, irreversíveis. Isso inclui traumas adicionais ao crime cometido, estigmatização e dificuldades de integração social

PUBLICIDADE

convidado
Por Celeste Leite dos Santos

Numa afronta à opinião pública, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, em Brasilia-DF, aprovou Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que proíbe o aborto no Brasil até em casos previstos na lei, como o estupro, por exemplo. Tal projeto - que recebeu a alcunha de PEC dos Estupradores, não sem motivo — elimina qualquer resquício de liberdade de escolha de meninas e de mulheres, em nosso País, de serem mães quando vítimas de abusadores / agressores.

PUBLICIDADE

Ainda que não se tenha consenso sobre o tema em nossa sociedade, nem fatos novos que justifiquem a volta da discussão de tema infame, após ampla rejeição popular da iniciativa, a questão em tela é mais séria e grave do que aparenta ser.

Ocorre que, hoje, o abortamento legal é permitido em casos de estupro, de risco de vida para a gestante, bem como quando é constatada a anencefalia do feto. Com a proposta em discussão - caso siga adiante e se torne norma constitucional, o Brasil corre o risco de se equiparar a nações como Honduras, El Salvador, República Dominicana e Nicarágua, que incluem a proibição do aborto desde a concepção em suas Constituições.

Os números deste tipo de crime em nosso País são estarrecedores. O Brasil registrou, somente em 2023, um estupro a cada seis minutos - totalizando 83.898 casos, entre estupro e estupro de vulnerável, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Salta aos olhos o fato de que, 76% destas ocorrências correspondam a estupros de vulneráveis, ou seja, quando há conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menores de 14 anos, crianças, ou incapazes de consentir o sexo, seja por deficiência, falta de entendimento ou por enfermidade.

Se aprovada a iniciativa já chancelada pela CCJ, teremos, no Brasil, inegável banalização de outra modalidade de violência: a pedofilia. De conduta negativa e repugnante, o estuprador / agressor, de pedófilo, ainda passará a se denominar “pai”, e, assim, exercer papel socialmente aprovado em nosso meio - inclusive, balizado pelos direitos e por deveres decorrentes do poder da instituição familiar.

Publicidade

E, não menos importante: obrigar vítimas de um estupro, ou que se encontrem em situação de perigo de vida a serem mães acarreta a revitimização de meninas e de mulheres. Além do que, forçá-las a levar uma gravidez, uma gestação indesejada adiante traz impactos psicológicos graves e, muitas vezes, irreversíveis. Isso inclui traumas adicionais ao crime cometido, estigmatização e dificuldades de integração social.

Há de se considerar, ainda, que, a criminalização do aborto em casos de estupro pode potencializar a realização de procedimentos clandestinos, resultando, consequentemente, em complicações médicas graves e até morte.

Em síntese: o Brasil não precisa punir vítimas, mas, sim, desenvolver políticas públicas efetivas de prevenção, de apoio e de desvitimização previstas no Estatuto da Vítima (projeto de lei 3.890/2020). O texto está parado no Congresso Nacional desde maio de 2023, por falta de vontade de políticos em abraçar, discutir e aprovar a questão.

Não é possível mais que se alegue desconhecimento e ignorância face aos efeitos nefastos da PEC dos Estupradores - sinônimo de retrocesso, um absurdo jurídico e inconstitucional, uma vez que é divorciado do que prevê nossa Carta Magna.

Aliás, o Brasil é signatário de diversos tratados internacionais de proteção aos direitos reprodutivos das mulheres. Logo, qualquer tentativa de criminalizar as hipóteses de aborto legal será um verdadeiro declínio em matéria dos direitos humanos fundamentais e da dignidade de mulheres e de meninas do nosso País.

Publicidade

Convidado deste artigo

Foto do autor Celeste Leite dos Santos
Celeste Leite dos Santossaiba mais

Celeste Leite dos Santos
Presidente do Instituto Brasileiro de Atenção Integral à Vítima (Pró-Vítima); promotora de Justiça em Último Grau do Colégio Recursal do Ministério Público (MP) de São Paulo; doutora em Direito Civil; mestre em Direito Penal; especialista em Interesses Difusos e Coletivos; e idealizadora do Estatuto da Vítima, da Lei de Importunação Sexual, e do Projeto Estadual 130/2016 de Igualdade Plena de Homens e Mulheres. Foto: Arquivo pessoal
Conteúdo

As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade única do autor.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.