Nas sociedades contemporâneas, as crianças desempenham um relevante papel econômico no mercado. Elas são, ao mesmo tempo, consumidores de produtos e serviços infantis, influenciadores das decisões familiares de compra e os futuros consumidores adultos, já habituados e fidelizados a determinadas marcas.
A Constituição da República de 1988, pela primeira vez na história, tratou com destaque, em seu Título VIII, Capítulo VII, da questão da proteção da criança. Em rigorosa consonância com os princípios de proteção integral da criança sistematizados na Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, a Lei Maior brasileira aborda a defesa do infante como prioridade, enunciando, em seu art. 227, que sua proteção é dever da família, da sociedade e do Estado.
A fim de implementar a proteção dos menores estabelecida na Constituição, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sob a forma da Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990, que revogou o antigo Código de Menores de 1979. O ECA prega como diretriz única e básica no atendimento de crianças e adolescentes a doutrina da proteção integral, em observância ao previsto na Constituição, e estabelece medidas concretas para a garantia dos direitos dos infantes.
Essa proteção integral deve ser entendida em seu sentido mais amplo, visto que a criança necessita de amparo físico, material, psicológico ou espiritual, a fim de que sejam supridas suas necessidades de afeto, alimento, vestuário, saúde, educação, lazer, etc., e lhe seja dispensado todo o cuidado e proteção em face de qualquer forma de exploração.
Sendo assim, em uma interpretação sistemática do disposto no art. 37, § 2º, do CDC e no art. 71 do ECA, tem-se que a publicidade infantil deve observar a idade do destinatário e respeitar sua condição de hipervulnerável, sob pena de se revelar abusiva e incorrer nas sanções previstas no estatuto consumerista, sobretudo a contrapropaganda, ex vi do art. 56, XII, do CDC.
Digno de menção também o disposto no art. 39, IV, do CDC. Tal norma prevê a proteção dos infantes ao vedar ao fornecedor "prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços".
Toda a lógica do sistema consumerista em termos de proteção à criança frente à publicidade se resume ao respeito de sua condição de hipervulnerável, a qual decorre de sua deficiência de julgamento, inexperiência, condição de pessoa em desenvolvimento, etc. O princípio geral da prioridade de proteção à criança instituído na Carta Magna resta, pois, observado no Direito do Consumidor, em especial no campo da publicidade em que as crianças são mais vulneráveis no mercado, tendo em vista, sobretudo, o preceito contido no art. 37, § 2º, do CDC. O Código, desta feita, se coaduna e se harmoniza com a legislação nacional e internacional de proteção à infância.
No entanto, embora com o advento do CDC tenha-se dado enfoque especial no plano jurídico à publicidade, afora os mencionados dispositivos da lei consumerista, não encontramos na legislação brasileira outras normativas específicas referentes à publicidade infantil. Embora tenhamos afirmado que o princípio da proteção integral à criança encontra guarida no CDC (por meio do disposto no art. 37, § 2.º), é forçoso reconhecer que a regulamentação legal da tutela dos infantes frente à publicidade ainda se revela bastante genérica e imprecisa.
De qualquer modo, o que se vislumbra é uma ausência de regramento complementar detido sobre o assunto no ordenamento jurídico pátrio. E isso, frise-se, pode prejudicar a efetividade da proibição legal constante do CDC, delegando completamente ao juiz (ou ao administrador) a tarefa de instituir os verdadeiros limites da publicidade infantil a partir da análise casuística, o que, por sua vez, gera insegurança jurídica.
É em função do reconhecimento da hipervulnerabilidade dos infantes que alguns parâmetros especiais devem ser traçados pela legislação. A regulamentação legal da publicidade dirigida às crianças, bastante específica, trazendo à baila limites claros aos publicitários promoverá uma melhor efetivação da proteção integral da criança e do respeito de sua vulnerabilidade agravada.
Entretanto, na ausência de legislação específica e sistematizada regulamentando a publicidade em consonância com o público-alvo da mensagem, no caso, as crianças, é arrazoado dizer que vigem as regras contidas no CBARP, as quais, como fontes subsidiárias, podem ser aplicadas pelos magistrados no intuito de robustecer a proteção das crianças frente à publicidade ilícita.
Impõe-se a elaboração de uma regulamentação legal mais detida e restritiva, que estabeleça limites aos comerciais durante a programação infantil, exija divisões claras que ajudem as crianças a discernir quando um programa termina e quando começa a publicidade, e que restrinja os horários de exibição de determinados comerciais inadequados aos infantes.
Por fim, a partir do exame da estrutura do controle da publicidade infantil no Brasil, constata-se que o controle da publicidade exercido pelos órgãos públicos possibilitou uma atuação mais direta e efetiva no combate às práticas lesivas aos direitos dos consumidores, inclusive das crianças, especialmente por meio da propositura de ações civis públicas e, que o controle privado exercido pelo CONAR, apesar de relevante por desestimular a difusão de publicidade antiética, não ressai satisfatório, tendo em vista a falta de coercitividade de suas decisões, bem como considerando a ausência de um controle prévio das mensagens publicitárias, a exemplo do que é realizado em Portugal, Espanha e Reino Unido, dentre outros países.
*Diógenes Faria de Carvalho, presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon)
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