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Opinião | A questão cronológica da lavagem de dinheiro

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convidado
Por Pierpaolo Bottini

O crime de lavagem de dinheiro, em todas as suas modalidades descritas na Lei 9.613/98, se caracteriza pela prática de atos com o objetivo de ocultar ou dissimular a origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos e valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. A menção à proveniência dos bens de infrações penais antecedentes, sua qualidade de produto de um ilícito penal, não é acidental: indica que antes do ato de encobrimento deve existir a infração, ou ao menos o início de sua execução.

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À primeira vista, a assertiva parece evidente. Mas há situações em que a questão cronológica entre o crime que se diz antecedente e o ato de lavagem de dinheiro pode não ser tão óbvia. É o que ocorre, por exemplo, quando o agente recebe e oculta valores para a prática de ilícitos futuros, ou nas situações em que os atos de dissimulação antecedem o delito, para facilitar a transferência dos recursos no momento de sua prática. Nesses casos, o ato de encobrimento é anterior à prática do crime.

Um exemplo recorrente na doutrina: um matador profissional recebe 100 mil reais para tirar a vida de alguém[1]. Temendo ser descoberto, pede que os valores sejam justificados por um contrato simulado de prestação de serviços de segurança, firmado e pago antes da prática do delito. O encobrimento, que, nesse caso, é anterior ao ato delitivo, anterior até ao início de sua execução, pode ser qualificado como lavagem de dinheiro?

Outro exemplo, mais usual: um empresário, com o objetivo de pagar valores indevidos a um funcionário público pela prática de atos relacionados ao exercício de suas funções, simula um contrato falso de consultoria com um conhecido seu, que recebe os valores em conta, saca o dinheiro e paga o corrompido. Suponha-se que o funcionário destinatário dos valores conheça a operação e tenha inclusive sugerido o procedimento, ou seja, tinha ciência e participou dos atos anteriores. Há uma dissimulação, voltada a encobrir a origem dos valores, que posteriormente são remetidos ao corrompido. Porém, o ato típico praticado por este último, a corrupção passiva, na modalidade “receber” (única que envolve produtos e recursos), é posterior ao encobrimento. Existe também aqui lavagem de dinheiro?

Como já exposto, o art.1º da Lei 9.613/98 descreve o crime como o mascaramento de bens, valores ou direitos provenientes de infração penal. É no momento do crime, identificado como o tempo da ação (CP, art. 4º) que devem estar presentes todas as circunstâncias descritas pelo legislador como necessárias à sua ocorrência, no caso, a ocultação e os bens provenientes de infração penal. A falta de qualquer deles, naquele instante, torna a conduta atípica. Ainda que o resultado possa ser posterior à conduta, o objeto jurídico sobre o qual ela recai, deve existir no momento da ação ou omissão criminosa, com todas as suas características. Nos casos em que a execução se alonga no tempo – como nos crimes permanentes – é possível que alterações nas circunstâncias fáticas sobre o objeto jurídico do delito afetem a qualidade jurídica da conduta. Por exemplo, se durante o cativeiro de uma extorsão mediante sequestro, a vítima faz 60 anos, ou é acometida de uma doença que prejudica seus meios de defesa, passam a incidir as agravantes do art.61, II, h do CP.

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Mas a alteração do status ou da substância do objeto em momento posterior ao ato não pode impactar sua qualificação jurídica. Caso a vítima da extorsão mencionada se tornasse septuagenária ou enferma depois de cessado do delito, tal superveniência não agravaria a conduta passada.

Outro exemplo: alguém danifica uma coisa própria e depois a doa para terceiro. No momento da ação aquele objeto não é alheio, portanto, não existe o crime de dano, previsto no art.163 do CP. Ainda que o agente saiba que vai transferir aquele bem a outra pessoa em curto espaço de tempo, e tenha intenção de repassá-lo danificado para dificultar sua utilização futura, a conduta continuará atípica, mesmo depois da doação, quando a característica de “alheio” passa a existir.

O mesmo se aplica à lavagem de dinheiro se, no momento da ocultação, os recursos não são provenientes de crime. No caso do assassino a soldo, no momento do pagamento, o valor não é proveniente de crime, porque não houve sequer o início da execução. Se o fosse, seria passível de perda, mesmo se o agente desistir do crime antes de começar a praticá-lo. Da mesma forma, seria possível a prisão em flagrante no momento da assinatura do contrato simulado, uma vez que, naquele instante, estaria ocorrendo a dissimulação prevista na lei. Também a prescrição desse último delito teria seu marco inicial naquele momento, pois a lavagem de dinheiro, na modalidade de dissimulação, não parece ter o caráter permanente que a 1ª Turma do STF reconheceu para as hipóteses e ocultação nos autos da Apn 863[2]

Sem dúvida, a prática posterior do delito transforma os valores em produto do crime. A partir daquele momento, os recursos podem ser objeto de sequestro durante o processo, e perda após a condenação. No entanto, a dissimulação, que é instantânea e não perdura no tempo, ocorreu antes desse momento, quando os recursos ainda eram lícitos, quando não pesava sobre eles o status de produto do crime, de forma que tal conduta será atípica.

No caso da corrupção passiva mencionado, em relação ao funcionário público, a ocultação também ocorreu antes do recebimento dos recursos, antes do início da infração penal. Ainda que a corrupção passiva seja consumada quando o funcionário público solicita os valores indevidos, nesse momento não há produto do crime. Os recursos movimentados pelo empresário ainda são lícitos, não são contaminados pela simples solicitação, do contrário, como exposto, poderiam já nesse momento ser apreendidos como oriundos de atividade delitiva.

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O produto criminoso só existirá no momento do recebimento, da disponibilidade dos valores, para o funcionário público ou preposto seu.

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A relação temporal da lavagem de dinheiro com a infração penal antecedente foi objeto de debates pelo STF na Ação Penal 470, onde foi discutido se, a um agente acusado de corrupção por recebimento de vantagens indevidas, poderia ser também imputada a prática de lavagem de dinheiro, porque os valores lhe foram disponibilizados em espécie após um complexo esquema de gestão fraudulenta de instituição financeira, destinado justamente a ocultar os recursos que seriam destinados à corrupção posterior. Em sede de Embargos Infringentes, a Corte Suprema afastou a lavagem de dinheiro, por reconhecer que atividades anteriores de mascaramento não são aptas a tipificar a conduta daquele que recebe posteriormente os bens[3]. Entendeu-se que, no crime de corrupção, o produto só existe – para o corrompido – partir do recebimento da vantagem indevida. É nesse instante que ele passa a dispor dos valores, seja diretamente, seja por intermediários. Antes disso, qualquer procedimento de mascaramento do capital, modificação de seus aspectos, ou translado, se dão sobre bens lícitos, e, portanto, são atípicos.

Em conclusão, o sentido literal do tipo penal de lavagem de dinheiro não abre espaço para reconhecer como típicas condutas de dissimulação anteriores ao início da execução da infração penal da qual são provenientes os recursos mascarados.

[1] Sanctis, Fausto Martin. Crimes antecedentes ou subjacentes na lavagem de dinheiro, in Bottini e Borges, Lavagem de dinheiro, p.293; Lorencini e Cavali, Separando o joio, peste e praga: caixa dois eleitoral, corrupção e lavagem de dinheiro In: Alexandre Jorge Carneiro da Cunha eta/li (Coords.). Direito, instituições e políticas públicas: 0 papel do jusidealista na formação do Estado, 2017, p. 40.

[2] Rel. Min. Edson Fachin, j. 23.05.2017. Sobre a natureza instantãnea do crime de lavagem de dinheiro, ao menos nas hipóteses do caput do art.1º da Lei 9,613/98, ver Bottini e Badaró, Lavagem de dinheiro, 5ª Ed., p.244

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[3] STF, EI-Décimos Sextos/MG, Ap 470/MG, rel. Min. Luiz Fux, j. 13.03.2014

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Advogado criminalista e professor. Foto: Tiago Queiroz/Estadão
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