O tema segurança de barragens, apesar de há muito ser debatido nos setores regulados, tornou-se popular apenas em 2015, quando do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, Minas Gerais. Naquela oportunidade, iniciou-se no Congresso Nacional um movimento visando à alteração da Lei de Segurança de Barragens, tendo sido apresentados ao menos dois projetos de lei nesse sentido, os quais pouco evoluíram nos primeiros anos após o acidente.
Em 2019, contudo, depois do desastre ocorrido em Brumadinho, o movimento ganhou força, e tanto a Câmara dos Deputados, quanto o Senado Federal foram tomados por dezenas de projetos de lei objetivando alterar a norma que instituiu a Política Nacional de Segurança de Barragens (Lei nº 12.334/2010).
Agora, a Câmara dos Deputados coloca em debate o Projeto de Lei nº 550/2019, que altera a Lei de Segurança de Barragens e propõe outras medidas.
O projeto teve tramitação relâmpago no Senado Federal, onde foi aprovado em duas comissões em um único dia. Já na Câmara dos Deputados, o texto aprovado pelo Senado sofreu diversas alterações, e hoje apresenta propostas interessantes para a garantia da segurança das barragens do país. Apesar disso, alguns aspectos do documento merecem uma análise mais criteriosa dos congressistas, de modo a permitir que as medidas propostas sejam, de fato, efetivas, especialmente para o setor elétrico, cujas barragens em nada se assemelham àquelas do setor de mineração - objeto dos desastres em questão.
Um dos principais exemplos refere-se à fiscalização da segurança da barragem pelo órgão fiscalizador do setor regulado e pela autoridade competente do Sistema Nacional de Meio Ambiente (o órgão licenciador do empreendimento), podendo essa, inclusive, lavrar auto de infração em razão do descumprimento da norma.
Cientes de que a intenção é incluir um novo agente fiscalizador ao processo, essa não parece ser a melhor opção, eis que a fiscalização de uma barragem do setor elétrico envolve análises técnicas de questões hidrológicas, hidráulicas, geológicas e geotécnicas, e, ainda, de questões estruturais. Ou seja, necessita de uma equipe de profissionais altamente especializados, com experiência nas mais modernas técnicas de supervisão, os quais não compõem os quadros dos órgãos ambientais do país.
O licenciamento ambiental é o procedimento pelo qual o órgão ambiental licencia a localização, instalação, ampliação e operação de atividades utilizadoras de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidoras ou capazes de causar degradação ambiental. Nesse contexto, os estudos ambientais têm como objetivo analisar as condições físicas e socioeconômicas do local onde será implantado o empreendimento, identificando eventuais impactos e definindo as medidas mitigadoras e compensatórias pertinentes. Eles não trazem elementos técnicos que permitam a análise da segurança de uma barragem. Daí porque, dentre as competências do órgão licenciador, não está o aferimento da referida segurança.
Não fosse suficiente, a definição de atribuições conjuntas ao órgão fiscalizador da atividade e órgão licenciador do empreendimento enfraquece a governança de ambos, podendo suscitar conflitos e duplicidade de exigências, o que gera insegurança jurídica aos empreendedores e fragiliza o processo de fiscalização da segurança da barragem.
Nessa toada, fica claro que a fiscalização das barragens deve ser executada exclusivamente pelos órgãos fiscalizadores do respectivo setor regulado, no caso do setor elétrico a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL.
Outro ponto do projeto que merece atenção refere-se à delimitação das atribuições dos órgãos de defesa civil no desenvolvimento de práticas preventivas, como a realização de exercícios simulados para concretização dos Planos de Ação e Emergência, as quais foram impostas exclusivamente aos empreendedores.
A atual redação da Lei de Segurança de Barragens já prevê a elaboração de um Plano de Ação e Emergência, pelos empreendedores, para o estabelecimento das ações a serem executadas em situações determinadas. No entanto, o novo texto vai além, determinando que cabe ao empreendedor, durante a elaboração do Plano, a realização de exercícios simulados periódicos com os envolvidos e as comunidades potencialmente afetadas.
Ao nosso sentir, a atuação isolada de empreendedores na gestão da emergência - especialmente no desenvolvimento de medidas práticas como simulados - jamais terá eficácia se não houver o envolvimento das autoridades de proteção e defesa civil, que são treinadas para essa finalidade e cujos agentes estarão em campo em uma situação de emergência.
É evidente que o empreendedor deve viabilizar a realização de referidos simulados, apoiando sua preparação e execução. Contudo, não se pode olvidar a relevância da condução dessas ações pelos entes federados, por meio de seus órgãos de defesa civil, que também devem atuar no estabelecimento de rotas de fuga e pontos de encontro, além de outras medidas práticas de segurança propostas na legislação em vigor (Lei nº 12.608/2012 - Política Nacional de Proteção e Defesa Civil).
Para tanto, há uma necessidade premente de estruturação dos órgãos de defesa civil municipais, cujos Planos de Contingência precisam ser elaborados, de modo a garantir uma resposta efetiva à população, não apenas em os casos de rompimento de barragens, mas diante de outras ameaças menos extraordinárias, como deslizamentos de terra e enchentes.
A Lei nº 12.334/2010 está em consonância com suas congêneres ao redor do mundo. Ocorre que não há legislação que possa garantir a total ausência de acidentes. Daí porque é tão importante que, além dos empreendedores e dos órgãos fiscalizadores, os agentes de defesa civil sejam treinados e estruturados para cumprir o papel que lhes cabe na implantação da Política Nacional de Segurança de Barragens. A determinação acertada das competências dos agentes envolvidos no processo é essencial para garantir a efetividade das medidas preventivas e, especialmente, das medidas práticas de proteção.
*Renata Messias Fonseca é coordenadora do Grupo de Trabalho de Licenciamento Ambiental do Fórum do Meio Ambiente do Setor Elétrico (FMASE), coordenadora do Comitê de Meio Ambiente da Associação Brasileira de Companhias de Energia Elétrica, sócia de Borges & Almeida Advocacia e da Dominium Ambiental Ltda.
*Julia Heidrich Sagaz é coordenadora do Grupo de Trabalho de Licenciamento Ambiental do Fórum do Meio Ambiente do Setor Elétrico (FMASE) e diretora Socioambiental da Associação Brasileira de Investidores em Autoprodução de Energia (ABIAPE)
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