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Opinião | A voz da advocacia deve ser ouvida no enfrentamento à litigância abusiva

Esse enfrentamento deve envolver todo o Judiciário, mas sem deixar de ouvir a advocacia e a sociedade. Apenas unindo esforços será possível coibir os abusos, proteger as ações legítimas e preservar a credibilidade do sistema de Justiça

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convidado
Por Daniela Magalhães

A alta litigiosidade no Brasil é um problema coletivo e crescente que desafia a eficiência e a credibilidade do sistema judiciário. Em razão de inúmeros fatores, inclusive da tecnologia, atualmente, 83 milhões de processos estão em tramitação nos tribunais do país. É como se, a cada três brasileiros, um estivesse com ação na Justiça. A complexidade de lidar com o excesso de litígio prejudica o andamento das ações legítimas e compromete a efetiva prestação jurisdicional. Contudo, para combater esse fenômeno, precisamos de soluções inovadoras, de dados, de transparência, de inteligência coletiva e não de remédios antigos.

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A chamada “litigância predatória” ou, simplesmente, “ações abusivas” ou ainda “fake lides”, como prefiro tratar, envolvem estratégias de criação deliberada de demandas artificiais que sobrecarregam o judiciário para pressionar a parte contrária a fechar acordos. Esse uso distorcido do direito de ação tem relação com fenômenos sociais que envolvem principalmente áreas da economia como o setor aéreo, bancário e de planos de saúde, para citar alguns exemplos.

Até pouco tempo atrás, falava-se em “advocacia predatória”, uma forma de vilanizar e estigmatizar toda a classe, mas isso mudou e, atualmente, há um consenso de que nem todos os abusos jurídicos decorrem das ações de advogados. Importante frisar que demandas em massa, assim como demandas eventuais em massa ou, ainda, ações para questionar falhas na prestação de serviços dos setores acima apontados, por exemplo, são legítimas e não integram o rol de abusos que comprometem a prestação jurisdicional. Importante também que tenhamos clareza para compreender que o Estado é o maior litigante a movimentar a estrutura judiciária, enquanto que, por exemplo, ações abusivas em face das companhias aéreas representam apenas cerca de 20% (vinte por cento) dos processos que envolvem uma das empresas do setor.

Mais importante do que apontar culpados, é compreender o verdadeiro problema enfrentado pelas partes envolvidas em ações abusivas e buscar ferramentas eficazes para combatê-las, assim como para enfrentar as ilegalidades dos grandes litigantes, sem restringir o acesso universal à Justiça, sobretudo para os mais vulneráveis.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deu um passo nesse sentido ao publicar, recentemente, a Recomendação nº 159 para identificar, tratar e prevenir a alta litigiosidade nos tribunais. No entanto, o CNJ esqueceu o principal: ouvir a advocacia. A Recomendação foi aprovada antes que representantes da classe tomassem posse no Conselho e a advocacia não pôde contribuir para o debate. Essa exclusão compromete a eficiência das soluções propostas.

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Uma das medidas sugeridas pelo CNJ - já que a Recomendação não tem força de lei - é a exigência de comprovações rigorosas da condição socioeconômica das partes em casos de requerimentos de gratuidade de justiça. Isso pode inviabilizar o acesso à Justiça para pessoas em situações mais vulneráveis, como trabalhadores informais ou pessoas com problemas de crédito que não possuem contas bancárias. Propostas como a quebra de sigilo bancário, por exemplo, seriam ilegais, desproporcionais e constrangedoras.

Há, ainda, quem acredite que aumentar as custas judiciais poderia desestimular as ações abusivas, mas tornar a Justiça mais cara apenas cria barreiras para que direitos legítimos alcancem quem mais precisa deles, ou seja, a população mais pobre. Em São Paulo, temos um dos tribunais mais caros do país, e isso não tem ajudado a reduzir a judicialização, evidenciando que esse caminho não resolve o problema.

A OAB SP tem atuado ativamente para diferenciar a litigância de massa legítima da litigância abusiva e combater práticas fraudulentas. O Tribunal de Ética e Disciplina da entidade é referência nesse esforço de vigilância constante e a única competente para julgar eventuais abusos da advocacia. Em outra frente, a Ordem paulista tem combatido empresas de tecnologia que se passam por escritórios de advocacia, como os chamados “aplicativos abutres”, que incentivam ações judiciais automáticas, especialmente no setor aéreo.

A solução mais eficaz, porém, é o fortalecimento de métodos extrajudiciais de resolução de conflitos, como a conciliação, a mediação e a arbitragem. A OAB SP tem investido em iniciativas que promovem essas práticas, como o projeto para criação de Casas de Justiça em todas as 257 Subseções do estado e o projeto OAB Concilia. A Instituição entende que essas medidas não apenas desafogam a Justiça, mas também oferecem respostas mais rápidas e efetivas aos cidadãos.

O combate à litigância abusiva é, antes de tudo, uma tarefa coletiva. Esse enfrentamento deve envolver todo o Judiciário, mas sem deixar de ouvir a advocacia e a sociedade. Apenas unindo esforços será possível coibir os abusos, proteger as ações legítimas e preservar a credibilidade do sistema de Justiça.

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Daniela Magalhães
Vice-presidente da OAB SP. Foto: Arquivo pessoal
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