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Opinião|Aborto: o direito certo e o argumento equivocado

Quem se opõe a esse projeto não deveria discutir o tipo e a gravidade das sanções, diretas ou indiretas, impostas à vítima de violência masculina. Deveria exigir que o aborto legal seja garantido por procedimentos seguros em todo o território nacional com amparo à vítima fragilizada

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Por Soraya Gasparetto Lunardi e Dimitri Dimoulis
Atualização:

Seria aceitável defender uma boa causa com argumentos equivocados? Ainda mais se esses argumentos forem apelativos e conseguirem adesão da opinião pública? É o que acontece na mobilização para preservar o aborto legal em caso de estupro. Enquanto a Direita pró-armas e antiaborto tenta tornar as mulheres brasileiras reféns de uma estratégia partidária e de uma pauta religiosa, formou-se um amplo movimento de protesto que provavelmente impedirá a votação do projeto de lei que criminaliza o aborto mesmo em caso de estupro.

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Passada a urgência do protesto, é um bom momento para refletir sobre os principais argumentos que foram apresentados na mídia, nas redes sociais e em discursos políticos para sustentar que o projeto de criminalização não era apenas reacionário, mas também juridicamente equivocado.

O primeiro argumento foi o da desproporcionalidade da pena. Como assim, punir a vítima do estupro como homicida? Foi uma espécie de grito que ecoou pelo país. Como ameaçar com pena de até 20 anos a vítima de estupro que não deseja ter um filho gerado por quem a violentou? Isso não seria “insanidade”, perguntou o Presidente da República.

Perguntamos, por outro lado: se a pena prevista para a vítima de estupro que aborta fosse menor? Os críticos da desproporcionalidade da pena concordariam? Imaginemos que o projeto fosse emendado no Congresso estabelecendo pena de alguns meses para a gestante e os médicos que a auxiliam. O argumento da desproporcionalidade cairia por terra, mas a criminalização das vítimas continuaria.

Logo, o problema não está na pena draconiana. Está no fato que o aborto em caso de estupro é um direito da pessoa que foi engravidada forçosamente. Esse direito sempre sofreu limitações fáticas no Brasil: falta de hospitais que possam acolher as vítimas, as múltiplas resistências dos aparatos médicos, hostilidade religiosa ao aborto. A estratégia conservadora é limitar ainda mais esse direito. Obrigar a gestante a ouvir batimentos cardíacos do feto, ver o ultrassom, ouvir “explicações” e “conselhos” de médicos e psicólogos que tentam dissuadi-la, impor prazos e múltiplas consultas.

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Quem se opõe a esse projeto não deveria discutir o tipo e a gravidade das sanções, diretas ou indiretas, impostas à vítima de violência masculina. Deveria exigir que o aborto legal seja garantido por procedimentos seguros em todo o território nacional com amparo à vítima fragilizada.

O segundo argumento que se espalhou pelas redes sociais, mas também se encontra em opiniões de juristas, é a discriminação de meninas que sofreram violência sexual. O argumento tem uma sólida base criminológica.

As mulheres vítimas de estupro em espaços públicos são praticamente sempre maiores de idade (se não, dificilmente teriam saído sozinhas). Após a agressão, recorrem à polícia e recebem atendimento médico. Caso se constate gravidez, o aborto pode ser feito poucos dias após a agressão.

A situação é totalmente diversa com meninas que sofrem violência sexual. Elas são agredidas em casa, quase sempre por parentes ou amigos, têm medo de denunciar e, muitas vezes, dificuldade de conseguir apoio emocional. Todas as pesquisas confirmam também que a gravidez de meninas tende a ser constatada tardiamente e o acesso ao sistema de justiça é mais demorado. Em resumo, qualquer tentativa de dificultar ou proibir o aborto em caso de estupro, atingiria quase exclusivamente adolescentes.

A constatação está absolutamente certa. Mas o argumento não convence. Não se pode ser contra a restrição do aborto porque ela penalizará mais meninas do que mulheres adultas! Imaginemos que uma mulher branca, pós-graduada e bem-sucedida em sua profissão solicita a realização de aborto em decorrência de estupro, encontrando-se no sexto mês da gravidez. Não é adolescente, não é socialmente vulnerável e não está destituída de recursos que lhe permitem o acesso célere a um aborto seguro. Mas isso em nada afeta seu direito de pedir o aborto tardio por razões que só dizem respeito a ela. Se esse direito for limitado (ou mesmo abolido), ela terá exatamente o mesmo prejuízo que as vítimas menores de idade.

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Escrevemos essa obviedade porque o uso do argumento da discriminação de meninas está errado nesse caso. O direito antidiscriminatório ensina que temos discriminação indireta quando uma regra aparentemente neutra discrimina, na prática, um grupo social. As normas do vestibular não diziam que negras e negros não têm acesso à Universidade. Mas a seletividade do ensino brasileiro fazia com que as matérias cobradas no vestibular direcionassem as vagas quase exclusivamente a brancas e brancos. Em tais casos, a regra deve mudar porque, apesar da formulação neutra, ela favorece os já privilegiados. Isso não se aplica no caso do aborto. As adolescentes não sofreriam maior impacto pela criminalização do aborto legal e as adultas não seriam beneficiadas.

Há mais. Quem critica uma discriminação luta para que ela cesse. Ora, ninguém pede que a criminalização do aborto atinja igualmente mulheres de todas as idades e condições sociais! O argumento da discriminação tem seu apelo emocional (“menina não é mãe”), mas é ilusório. Não se trata de discriminação, mas de violência masculina. São sempre homens que estupram e engravidam forçosamente meninas e mulheres. Garantir o direito ao aborto de maneira irrestrita é uma das formas de amenizar essa dor.

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Soraya Gasparetto Lunardi
Professora livre-docente de Direito Público da Unesp. Foto: Arquivo pessoal
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