Nas últimas três décadas o Brasil viveu um período de deterioração econômica e moral que colocou o país em uma rota que precisa ser corrigida a curto prazo para garantir vida mais digna à sua população.
Os números oficiais possibilitam uma análise crítica e sem contaminação de caráter ideológico ou partidário. São dados capazes de demonstrar os desacertos responsáveis pela situação atual.
De 1995 até hoje – portanto nos últimos 29 anos -, o Brasil teve cinco presidentes da República. Luiz Inácio Lula da Silva governa há 9 meses, depois de dois mandatos de 4 anos (2003 a 2011). Ele foi precedido recentemente por Jair Bolsonaro (4 anos no cargo), Michel Temer (2 anos e 4 meses), Dilma Rousseff (5 anos e 8 meses) e Fernando Henrique Cardoso (8 anos). Nesse período, o PT governou por 14 anos e 8 meses, seguido pelo PSDB (8 anos), PL (4 anos) e MDB (2 anos e 4 meses).
Após praticamente três décadas, o Brasil é uma nação marcada por enormes desigualdades sociais. De acordo com dados do IBGE, 62,5 milhões de brasileiros vivem em estado de pobreza. Isso corresponde a nada menos que 29,4% da população nacional, uma legião cidadãos com apenas R$ 16,20 por dia para sobreviver. No mês, dispõem de somente R$ 486,00, valor correspondente a 44,2% do salário mínimo à época. A pobreza absoluta atinge 17,86 milhões de brasileiros, ou 8,4% da população do país. Pessoas que sobrevivem com apenas R$ 5,60 por dia, ou R$ 168,00 por mês, o correspondente a meros 15,27% do salário mínimo vigente.
As desigualdades regionais também são gigantescas. A Região Norte tem 44,9% da população vivendo na pobreza. Na Região Nordeste, mais da metade da população (53,5%) amarga essa situação. Nas demais regiões – Centro-Oeste, Sudeste e Sul – o índice de pobreza é significativamente menor (11,7%), praticamente quatro vezes menos que na população das regiões Norte e Nordeste. O drama fica ainda maior quando olhamos por outro ângulo: o Nordeste, concentrando apenas 30% da população nacional, abriga em seu território mais de 53,2% dos miseráveis brasileiros.
A renda é outro indicativo incontestável das desigualdades regionais. A média nacional é de R$ 1.625,00 por mês. No Norte do país, é de apenas R$ 1.107,00 por mês, ou seja, 32% abaixo da média nacional. Na Região Nordeste, é ainda menor: R$ 1.032,00 por mês, isto é, 37% abaixo da média nacional. Já nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, a renda média é de R$ 1.983,00. Fica 22% acima da média nacional; é 79% maior que a média da Região Norte e quase o dobro (94%) da média da Região Nordeste. Uma discrepância absurda dentro da mesma nação. Um escândalo que escancara a falência das políticas públicas e evidencia que o Brasil está torto, é absolutamente injusto e o combate às desigualdades nunca foi prioridade.
O resultado disso é indisfarçável. Segundo o IBGE, 58,7% dos lares brasileiros enfrentavam algum tipo de insegurança alimentar em 2021. Ou seja, naquele ano quase 6 em 10 famílias não tinham assegurado o acesso à alimentação básica.
As desigualdades raciais são igualmente evidentes. De acordo com o IBGE, a renda média de cidadãos pretos e pardos em 2021 era de R$ 949,00/mês, a metade da renda média de cidadãos brancos, de R$ 1.886,00/mês.
Esse dado fica ainda mais estarrecedor quando analisamos o resultado do Censo 2022. O Brasil tem 55,9% de sua população composta por pretos e pardos, e 42,8% de brancos. Isso dá a dimensão de que este é um país racista pela renda que, entre várias outras consequências, dificulta o acesso à escola.
Não é surpresa, então, que o Brasil ostente números vergonhosos em educação. Dados de 2019 do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), realizado, de 3 em 3 anos, pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e que representa a mais importante avaliação comparativa de educação no mundo, o Brasil ficou na posição 58-60 nesse ranking em Leitura; em 66º-68º lugar em Ciências, e em 72º-74º lugar em Matemática. O resultado revelou que, em Leitura, o Brasil apresentou estagnação de uma década e que dois terços dos brasileiros com 15 anos de idade sabem menos que o básico de Matemática. A posição geral do Brasil – 62º lugar, com 413 pontos -, coloca o país em nível próximo de Albânia, Catar, Brunei, Bósnia e Colômbia.
No entanto, quando o levantamento é feito com alunos das escolas particulares de elite, o Brasil sobre para 5º lugar no mundo em Leitura. Um retrato da discrepância entre a qualidade do ensino público e privado, com evidentes reflexos na formação dos brasileiros mais pobres.
A violência urbana é outro fantasma que assombra a vida dos brasileiros. De acordo com o ranking da UNDOC, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, divulgado em maio de 2023 (http//www.brasilparalelo.com.br), o Brasil é o oitavo país mais violento do mundo e com a maior taxa de homicídios. Em 2022 o Brasil foi o país com maior número absoluto de homicídios do mundo.
A corrupção, endêmica, suga os cofres públicos e desmoraliza a nação. O Brasil ocupa a 94ª posição, com nota 38, no Índice de Percepção de Corrupção 2022, produzido pela Transparência Internacional que avalia 180 países, atribuindo notas entre 0 e 100. Nesse levantamento, quando mais alta a nota, maior é a percepção de integridade do país. Ficamos no mesmo nível de países como Argentina, Etiópia, Marrocos e Tanzânia. Não há, portanto, razão alguma de orgulho. Pelo contrário, nos últimos 10 anos o Brasil despencou 25 posições nesse ranking.
Na economia, o país está entre as 10 maiores economias do mundo, porém sacrifica a população cobrando tributos que somam 33,91% do Produto Interno Bruto (PIB). Para piorar, gera déficit nominal de 8% do PIB, o que significa dizer que compromete com a gastança 41,91% de todas as riquezas produzidas nacionalmente. O custo da máquina pública segue altíssimo, sem a proporcional oferta de serviços de qualidade à população.
É impossível fazer de conta de que está tudo bem nesse país riquíssimo em recursos naturais e pobre em políticas públicas. O Brasil padece de doenças crônicas – pobreza; desigualdades sociais, regionais e raciais; carência de habitações, saneamento básico, educação e saúde públicas de qualidade; violência; gastos públicos excessivos; privilégios indefensáveis; e corrupção, dentre outros – cujas causas nunca são efetivamente combatidas. As soluções buscadas quase sempre são espasmódicas e paliativas, não raro contaminadas por interesses setoriais. O retrospecto das últimas três décadas não nos permite enxergar no horizonte a transformação do Brasil em um país desenvolvido, mais justo e com qualidade de vida a 100% de seus 203 milhões de habitantes.
Há muitos obstáculos a serem vencidos, entre elas a visão míope e egoísta de que a pobreza gera as desigualdades, quando a realidade mostra que é exatamente o contrário. Tudo alimentado pela absurda concentração de renda (Brasil ostenta a vice liderança, o 2º país do mundo no ranking de concentração de renda).
Os números – oficiais – mostram que somente a paixão político-partidária pode aprovar os governos desses últimos 29 anos, período em que a população pobre jamais foi tratada verdadeiramente como prioridade, assim como nunca se deu atenção às desigualdades.
O país se ressente da falta de um plano de metas, de uma política econômica sólida e de uma política industrial bem planejada. O que se vê é somente a permanente discussão da criação de mais tributos, o aumento da carga tributária pensado como solução para tudo, sempre.
Falta política educacional com metas factíveis de educação em tempo integral, atualização da grade escolar e valorização dos professores, e também não se implanta uma política ambiental com ênfase na Amazônia, com efetivo combate ao garimpo ilegal, ao desmatamento e ao contrabando das riquezas locais, e com a implementação de programas para tornar a região inclusiva para seus 18 milhões de habitantes, incluindo a exploração sustentável de seus recursos naturais.
Falta à sociedade conclamar um projeto nacional para despertar as forças vivas da nação a um grande concerto republicano lastreado em verdades – e não em promessas que nunca são cumpridas -, visando à redução de privilégios, à intolerância com a corrupção e ao verdadeiro enfrentamento de todos os obstáculos que ainda impedem o desenvolvimento nacional e a transformação do país em uma nação menos desigual e mais justa para todos os brasileiros, independentemente da sua raça ou da região onde vivem.
Dois séculos depois do grito da independência, é hora de bradar “Acorda, Brasil!”.
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros Brasil, um país à deriva e Caminhos para um país sem rumo
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