O Brasil precisa de um serviço público eficiente e preparado, e isso começa com um processo seletivo que valorize o mérito e a competência. Um servidor público deve ter atenção aos detalhes e respeito às normas, características que não podem ser negligenciadas logo no início de sua jornada. Foi noticiado um acordo firmando entre MPF, União (Ministério da Gestão e Advocacia-Geral) e Cesgranrio que possibilita a aprovação de candidatos que falharam em cumprir uma regra básica dos concursos públicos: o preenchimento correto do cartão de respostas. Assim, mais de 30 mil candidatos que não preencheram corretamente as “bolinhas” foram reinseridos no concurso.
O acordo ocorreu em sede de ação civil pública do MPF, a qual tratou de outros pontos, mas meu foco aqui é a intenção de “salvar” candidatos que não responderam as questões da forma determinada.
Isso enfraquece o sistema de seleção e desmoraliza toda a estrutura do Estado. Se um candidato ainda não aprendeu nem mesmo a preencher o cartão, isso significa que ele ainda não está apto a ser um servidor público. Aprovações “a fórceps” desprestigiam quem estuda e premiam quem deveria ter estudado mais, representando uma seleção às avessas e uma inaceitável reedição do “jeitinho brasileiro”.
O Concurso Nacional Unificado (CNU), apelidado de “Enem dos Concursos”, é um projeto positivo. Ele permite ao governo contratar novos servidores para carreiras e órgãos diferentes em um mesmo certame – resultando, portanto, em economia de esforços e de despesas para a União e para os candidatos. A ampla divulgação das vagas e da seleção também foi benéfica, disseminando a ideia de que, estudando e se preparando, a pessoa pode encontrar lugar na administração pública. Mas, se o objetivo é construir um Estado eficiente e prestar um serviço de excelência à sociedade, decisões como esse acordo devem ser repelidas com vigor. A situação concreta, em resumo, é que deixar de reprovar candidatos que não preencheram o gabarito da prova da forma correta. Alguém pode achar que isso irá melhorar o funcionalismo público?
Essa medida não revela bom senso nem protege o serviço público. Não é possível melhorar o país abrindo espaço para a incompetência e a desatenção. Flexibilizar exigências simples, como o preenchimento de um gabarito, mina a essência do concurso público. Isso cria um precedente perigoso. Não se pode pensar na área pública como instituição de caridade ou uma variação de programas sociais! Um servidor despreparado é ruim para a população, aumenta o custo Brasil e certamente prejudicará a eficiência e a qualidade do serviço ofertado.
O caminho para a eficiência e o respeito passa pela valorização das regras e do esforço individual. É preciso preservar a segurança jurídica e os princípios que sustentam o serviço público. Não ajuda em nada mudar as regras no meio do jogo e, ainda que com boas intenções, dar um “jeitinho” para “salvar” candidatos desatentos. Essa é uma “gentileza” equivocada!
O argumento de que o acordo permitirá corrigir mais provas de candidatos cotistas tampouco é aceitável, uma vez que o edital da prova já continha os parâmetros para avaliação e aprovação também de cotistas. A mudança termina por ser injusta, inclusive, com os cotistas que eventualmente perderão suas vagas para colegas que não souberam preencher o gabarito de modo correto. Além disso, mostra uma perversão do sistema de cotas, que é positivo quando corrige a dificuldade de competição, mas é teratológico quando permite a aprovação de pessoas despreparadas. Em breve, a população irá querer ser atendida por não cotistas, o que aumentará o estigma social. Isso é uma crueldade com todos, a começar pelos cotistas que estudam e que estão sendo prejudicados.
Estamos diante da aprovação “por acordo”. O serviço público precisa de um nível mínimo, as normas de concursos não podem ser mudadas no meio do caminho e facilitar a aprovação prejudica a seleção. Tal prática compromete a credibilidade do processo e abre espaço para a incompetência e o improviso. O caminho para quem não preencheu corretamente é aprender a preencher e jamais ser tratado com leniência.
Além das questões legais e morais, a medida tem também um impacto financeiro e logístico significativo. O cronograma do concurso foi alterado, postergando a divulgação da lista de aprovados para fevereiro de 2024 e prejudicando milhares de candidatos que seguiram as regras e esperavam o resultado dentro do prazo original.
Sob nenhum ângulo, portanto, o trato é razoável. Se persistir essa equivocada medida, veremos o CNU, que começou como uma excelente e bem-vinda novidade no universo dos concursos, se transformar em pesadelo para os milhares de candidatos que se prepararam e fizeram a prova de forma adequada. Nessa preparação eu incluo também os diversos outros concursos anteriores em que os candidatos tiveram mau desempenho ou não foram aprovados por pouco. Agora, no entanto, eles verão colegas que não fizeram a prova corretamente ganharem o direito de serem aprovados por “decreto” –ou “acordo”.
Dado o absurdo da situação, a tendência à judicialização é grande, resultando no adiamento indefinido da data de divulgação do resultado final –que foi fixada para fevereiro pelo novo cronograma, mas que não pode ser apontada com precisão porque, uma vez judicializada a questão, já não se pode saber o que nem quando acontecerá. E, diga-se desde logo, aprovar quem não sabe sequer ler as orientações e segui-las não é matéria discricionária, mas algo próximo da improbidade à luz do artigo 37 caput da Constituição Federal.
Esperemos, pelo bem do país e do serviço público, que esse acordo seja revisto o quanto antes para que a confiança nos concursos não seja perdida e para que a busca pela excelência e pela eficiência no setor público não seja tratada como valor secundário. A lógica ruim desse acordo não pode se tornar um padrão. Não iremos melhorar o país desprestigiando quem estuda e fazendo essa espécie de “filantropia”, totalmente equivocada.
Nunca imaginei que o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos fosse “inovar” tanto que contrariasse o seu primeiro nome, que deveria ser a prioridade. Afagar o despreparo é a antítese da “gestão”. Também impressiona que outros órgãos tenham aprovado esse entendimento. Por fim, lamento que a Cesgranrio, instituição que promoveu meu vestibular para o curso de Direito, em 1983, tenha acolhido a ideia. A menos que haja uma mudança de rumo, vejo com profundo pessimismo o futuro das seleções públicas no país e, como consequência, o desmonte de qualquer esperança de um serviço público melhor.
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