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Acordos de leniência e múltiplos regimes de responsabilização: (in)segurança jurídica

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Por Clarissa Oliveira e Arthur Barretto
Atualização:
Arthur Barretto e Clarissa Oliveira. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Nos últimos anos, a competência e legitimidade das autoridades brasileiras para celebração de acordos de leniência vem preocupando não só os responsáveis pelas áreas Jurídica e Compliance das empresas, mas todos os executivos e membros de conselho de administração que tomaram ou tomariam a decisão de firmar acordos de leniência no Brasil em decorrência da prática de condutas supostamente ilícitas.

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A responsabilização administrativa, civil e criminal de médias e grandes empresas, empresários e políticos pela prática de atos de corrupção e de infrações contra a ordem econômica, o sistema financeiro e o mercado de capitais têm ocupado lugar fixo no radar de órgãos de persecução e do Poder Judiciário, sendo que um dos principais fatores para tanto reside na ampliação e utilização dos espaços de consenso.

Como é de conhecimento, a identificação e investigação de infrações administrativas e/ou crimes praticados na esfera econômica não é tarefa fácil. Mais precisamente, em muitos casos, a participação e a cooperação de particulares e pessoas jurídicas, envolvidas direta ou indiretamente nas condutas, é imprescindível para a descoberta, apuração e elucidação dos fatos.

Por esta razão, o Estado tem estimulado e incentivado a cooperação por parte de pessoas físicas e jurídicas, transferindo-lhes o ônus de prevenir, detectar, reprimir e/ou reportar às autoridades competentes condutas que sejam consideradas crimes e/ou infrações administrativas.

Por exemplo, a cooperação pode ser concretizada por diversos instrumentos jurídicos, tais como: (i) acordo de leniência previsto no Capítulo V da Lei nº 12.846/13 (Lei Anticorrupção); (ii) colaboração premiada (Lei nº 12.850/13); e (iii) acordo de leniência estabelecido na Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência). Embora não haja disposição expressa em nosso ordenamento jurídico, o Ministério Público Federal também tem negociado acordos de leniência com base em uma interpretação sistemática de diversas normas e com fundamento em suas funções constitucionais.

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Não obstante a existência de todos esses mecanismos à disposição das pessoas jurídicas e/ou físicas, pode-se dizer que, atualmente, a celebração de acordos de leniência não proporciona completa segurança jurídica aos seus signatários.

Isso porque, a complexidade e multidisciplinariedade de fatos ocorridos no âmago de médias e grandes corporações muitas vezes invadem as esferas de atribuição e competência de diversos órgãos ao mesmo tempo, entre os quais se destacam: (i) Controladoria-Geral da União (CGU); (ii) Advocacia-Geral da União (AGU); (iii) Ministério Público Federal (MPF); (iv) Tribunal de Contas da União (TCU); (v) Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE); e (vi) Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Em outras palavras, dependendo das circunstâncias do caso concreto, atos ilícitos praticados na seara corporativa podem possuir pontos de intersecção com diversas normas em paralelo. Consequentemente, acordos de leniência celebrados com determinados órgãos podem repercutir em outros que não participaram da negociação e que, por lei, seriam igualmente competentes para apurar, processar e punir os signatários sob a sua ótica.

A prática mostra que as pessoas jurídicas e/ou físicas, em conjunto com seus respectivos advogados, devem avaliar os fatos a serem reportados e tentar reunir na mesma mesa todas as autoridades que teriam atribuição e competência para apurá-los, o que não é tarefa fácil e, por vezes, pode dificultar ou mesmo inviabilizar acordos. Inclusive, essa atuação harmônica e cooperativa entre órgãos foi reconhecida e incentivada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região no julgamento do AG nº 5023972-66.2017.4.04.0000.

Nesse contexto, em uma tentativa de aprimorar o sistema de prevenção e combate à corrupção, o Supremo Tribunal de Federal coordenou a celebração de Acordo de Cooperação Técnica por parte da CGU, da AGU, do TCU e do Ministério da Justiça e de Segurança Pública. No entanto, apesar de ter participado das discussões, o Ministério Público Federal não assinou o documento, tendo em vista que limitaria a sua atuação no combate à corrupção.

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Além disso, perdeu-se a oportunidade de incluir órgãos como CADE e CVM, que possuem legitimidade e competência para aplicar sanções por fatos que podem estar englobados em acordos de leniência da Lei Anticorrupção, por exemplo.

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De fato, enquanto pendente previsão legal tratando desta questão, cabe ao Poder Judiciário avaliar e minimizar os efeitos da insegurança jurídica, delimitando a amplitude e poder de atuação dos órgãos não signatários nesses casos.

Sob a perspectiva jurisprudencial, destaca-se a recente decisão proferida pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança nº 35435 em 30 de março de 2021, julgado coletivamente em conjunto com os Mandados de Segurança nº 36.173, 36.496 e 36.526, em razão da similaridade dos fatos.

No caso específico do primeiro Mandado de Segurança, determinada empresa firmou acordo de leniência com o MPF e termo de cessação de conduta com o CADE, porém, em paralelo, o Tribunal de Contas da União ameaçou aplicar em procedimento administrativo sanção de inidoneidade para contratar com o Poder Público. Em momento superveniente, a empresa ainda celebrou acordo de leniência com a CGU e a AGU.

Segundo o TCU, a assinatura de acordo de leniência com o MPF não retiraria a sua competência para buscar o ressarcimento integral de prejuízos causados pelas condutas ilícitas, nos termos do artigo 16, §3º, da Lei nº 12.846/13.

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Em seu voto, o Ministro Relator Gilmar Mendes reconheceu a competência do TCU para fiscalizar a aplicação de verba pública, de quantificar e buscar a eventual reparação por danos causados ao erário, mesmo em casos em que houve celebração de acordo de leniência. Todavia, por outro lado, aplicar sanção de inidoneidade contra empresa que celebrou acordo de leniência com outros órgãos, inclusive CGU e AGU, não seria compatível com os princípios da eficiência e da segurança jurídica.

Ademais, o Ministro ressaltou que o TCU dispõe de mecanismos a serem manejados para a reparação de danos ao erário (indisponibilidade de bens e multa, por exemplo). Contudo, ainda assim deveria haver uma análise de proporcionalidade e de eventuais impactos que seriam gerados sobre o acordo de leniência outrora pactuado. Por sua vez, eventual inidoneidade aplicada pelo TCU tornaria ineficaz cláusula do acordo que previa a isenção ou atenuação de sanções administrativas previstas na Lei nº 8.666/93. Ou seja, a suspensão de possível inidoneidade aplicada pelo TCU consistiria em condição para o cumprimento do acordo, sem a qual poder-se-ia decretar uma "pena de morte" em desfavor da empresa.

Nesse contexto, verifica-se que esta recente decisão é um paradigma no âmbito do Supremo Tribunal Federal e pode se tornar um importante precedente para proteger pessoas jurídicas e físicas que venham a celebrar acordos com autoridades no futuro.

Entretanto, para além do precedente e do insuficiente acordo de cooperação técnica mencionado acima, é importante que o tema seja enfrentado diretamente pelo legislador para que se preencham legalmente todas as lacunas existentes com relação ao tema, viabilizando uma efetiva atividade conjunta e harmônica entre órgãos de persecução, bem como facilitando e proporcionando segurança jurídica àqueles que, de alguma forma, buscam cooperar com a justiça.

*Arthur Barretto é advogado no escritório Chinaglia Oliveira Advogados, especialista em Direito Penal Empresarial, Compliance e Investigações Corporativas

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*Clarissa Oliveira é sócia do escritório Chinaglia Oliveira Advogados, especialista em Direito Penal Empresarial, Compliance e Investigações Corporativas

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