Felizmente, tornou-se constante noticiar o avanço produtivo e tecnológico, os resultados surpreendentes e os sucessivos recordes conquistados pelo agronegócio. E em 2020 não foi diferente, mesmo diante do grande baque advindo de uma inesperada pandemia global. O setor agropecuário garantiu, mesmo durante o pico da crise pandêmica, o suprimento de alimentos no mercado interno e contribuiu para que não faltasse comida no mundo. Mas, por outro lado, viu-se neste ano a consolidação da retórica de distintos ataques e ambições que o setor é alvo, muito além da distorcida e injusta reputação como inimigo do meio ambiente. Onde há prosperidade e produção de riquezas, transpassa cobiça de terceiros. No campo, essa máxima vem, desafortunadamente, se confirmando na prática, em especial pela sanha arrecadatória aos famigerados cofres públicos.
Após o primeiro ano do atual governo federal ficar marcado pela concretização da Reforma da Previdência, a expectativa para 2020 voltou-se para outras importantes reformas estruturais: a administrativa, para redução da ineficiente e inchada máquina estatal, e a tributária, objetivando a simplificação e racionalização do sistema atual, caracterizado pela complexidade, insegurança jurídica, onerosidade excessiva e custo de conformidade insustentável.
Com passar dos meses, a pandemia se agravou e, junto com ela, o rombo do orçamento público atingiu níveis alarmantes. Em meio a essas circunstâncias adversas, projetos de reforma tributária assumiram o protagonismo, deixando de lado a tão almejada e prioritária reforma administrativa, e ainda tirando o sono de muitos setores, sobretudo o rural, ante a constante ameaça de elevação da carga fiscal. Fazer a reforma tributária antes da administrativa é alimentar o ciclo vicioso que há tempos abala o Brasil: arrecadar para manter o gigantismo do Estado.
Muito se discutiu sobre as Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) 45/2019 e 110/2019 e o Projeto de Lei nº. 3.887/2020. Para o agronegócio, todos os projetos resultariam incremento na tributação, em detrimento de alívio fiscal para alguns outros setores. Ainda, a insegurança sobre a não cumulatividade plena, nunca respeitada de fato pelos autores da política fiscal, o custo financeiro decorrente do longíssimo fluxo de caixa para ressarcimento do crédito e o advento de conformidade fiscal mais onerosa para a imensa maioria dos produtores -- mais de 98% deles são pessoas físicas --, são outros aspectos que preocupam os integrantes da cadeia produtiva rural.
Segundo estudo elaborado pela Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), os textos das reformas apresentadas podem elevar em até 23,6% o custo de produção, inviabilizar a continuidade de algumas atividades agropecuárias e, sobretudo, afastar a competividade global do produto nacional ao desprezar o tratamento tributário diferenciado para o setor, na medida em que todos os países com relevância no agronegócio, à exceção do Chile, praticam tal diferenciação em respeito às peculiaridades do setor e dos produtos ditos primários.
O agronegócio tem particularidades próprias, específicas e concorre no mercado mais protegido do planeta. Se os projetos de reforma não entenderem esse contexto, o aumento de carga trará como resultado o retrocesso. Mercados consumidores obtidos em outros países, depois de longo caminho, serão perdidos. Empregos deixarão de existir e aqui se deve lembrar que o setor emprega 1 a cada 3 trabalhadores brasileiros. Investimentos que têm permitido a tecnologia a competitividade não ocorrerão. O aumento do custo dos alimentos e o aumento da regressividade no sistema tributário são consequências naturais desse ataque sobre o campo. A médio e longo prazos, o desastre é inevitável.
O ano se encerra com a evidente percepção de amplo domínio da reforma tributária na agenda do Legislativo e de que o agronegócio, dado o seu potencial, permanecerá como foco prioritário da cobiça arrecadatória, exigindo mobilização ainda maior do setor e trabalho vigilante e incansável da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), de modo a assegurar que a reforma ou modernização do sistema tributário alcance os autênticos objetivos de simplificação e estabilidade jurídica, que estimulem o desenvolvimento econômico nacional, sem o efeito colateral de aumento da carga fiscal setorial, que poderia tirar o campo do caminho de prosperidade que vem trilhando com excelência e incansável esforço.
Outro tema da pauta em 2020, e que se estenderá para o próximo ano, diz respeito aos Convênios 52/1991 e 100/1997, que reduzem o ICMS nas operações interestaduais sobre máquinas e implementos agrícolas e sobre insumos e defensivos agropecuários, respectivamente. A mobilização para as sucessivas prorrogações garantiu a vigência dos convênios até o primeiro trimestre de 2021.
Condicionada à decisão unânime dos integrantes do CONFAZ, a extensão do prazo dos convênios tem enfrentado forte resistência e, por outro lado, ainda não há consenso tampouco proposta avançada para uma solução definitiva que dispensasse a atual necessidade de prorrogação.
O aumento da tributação de insumos agrícolas não se restringe às tentativas de extinção desses convênios. Exemplo disso é o recente ajuste fiscal promovido pelo estado de São Paulo, retirando a isenção do ICMS a partir de 2021 para adubos, fertilizantes, milho, farelo de soja, sementes, defensivos e outras matérias-primas essenciais para o setor.
Ao se falar em taxação do setor pelos estados, é cada vez maior a arrecadação através dos fundos que incidem sobre as principais commodities, como o Fethab (Fundo Estadual de Transporte e Habitação), do Mato Grosso, e o Fundersul (Fundo de Desenvolvimento Rodoviário), do Mato Grosso do Sul, cobrados sobre algodão, gado, milho, soja, cana-de-açúcar e arroz. Até então, o Judiciário, apesar de provocado, nada fez para frear as ilegalidades cometidas por tais fundos.
Outros governos estaduais com aptidão agrícola têm em curso iniciativas para constituição de fundos semelhantes e outras formas de taxação que podem atingir mais o bolso dos produtores e agroindústrias. Recente recomendação do Ministério Público de Goiás, por mais absurda e inconstitucional que pareça, ilustra bem esse cenário, ao indicar para o governo estadual a instituição de cobrança de imposto sobre exportação de grãos como forma de contribuir com o reequilíbrio das contas públicas.
Na seara federal, além dos projetos de reforma tributária, o Imposto Territorial Rural tornou-se um dos grandes focos da política fiscal por ser visto como enorme potencial de aumento da arrecadação. Iniciativas em 2020 da Receita Federal buscaram fomentar medidas, especialmente dos municípios conveniados, para elevar o montante angariado anualmente com o ITR, oferecendo-o como solução para os déficits das administrações municipais, a quem são repassados os valores desse imposto federal. Sob o entendimento de que é insuficiente a atual receita pública com o ITR, essas instituições pregam pelo aumento abrupto da avaliação de terras e a atualização dos fatores de ocupação e utilização das propriedades rurais, esquecendo-se do caráter extrafiscal do imposto estabelecido na Constituição Federal.
Levantamento promovido pela CNA apontou que no presente ano houve agravamento das distorções do ITR por violação e abusos de municípios conveniados. Além da constatação de aumentos em até 600% do valor da terra nua em comparação com 2019, em algumas regiões, há grande disparidade entre a pauta de valores definidas pelos municípios e o real preço de terras negociado no mercado.
Ainda que a revitalização do ITR seja bem acolhida por todos, o setor tem se deparado com iniciativas e propostas voltadas substancialmente ao aumento da arrecadação, que não solucionam a atual insegurança jurídica e carência de parâmetros. Não é diferente com o Projeto de Lei 5.135/2019 em tramite no Senado Federal, cuja rejeição pela FPA é justificada nos nocivos impactos sobre os possuidores e proprietários de terras.
Por fim, não menos relevante é o destaque a ser dado ao desempenho do Supremo Tribunal Federal em 2020. O funcionamento exclusivamente em plenário virtual criou campo fértil para que importantes temas tributários fossem julgados sem o devido debate, resultando, em sua maioria, em derrotas inesperadas aos contribuintes. O agronegócio também não saiu ileso e acompanha apreensivamente relevantes julgamentos já iniciados, dentre os quais da ADI 5.553, sobre a inconstitucionalidade da redução do ICMS para insumos agrícolas prevista no Convênio 100/97, e do RE 700.922, que discute a contribuição ao funrural exigida dos produtores pessoas jurídicas.
Dentre as surpresas negativas advindas da Suprema Corte que repercute no setor rural, está o julgamento do RE 796.376, amplamente protestado por contribuintes e advogados, ao mudar a já consolidada prática fiscal sobre a imunidade do ITBI na integralização de imóveis em sociedade, inovando na limitação da imunidade até o montante do capital social. Esse novo entendimento inviabiliza a conferência de imóveis rurais em agropecuárias e holdings, obstando a profissionalização e melhor estruturação dos produtores rurais.
Na medida em que o campo, que é a vocação natural do País, avança e conquista mais destaque em relação aos demais setores da economia, todos os entes da federação concentram seus esforços para que o agronegócio pague maior parte da conta do enorme rombo fiscal. Essa é a revelação que a retrospectiva 2020 traz de forma evidente para o agronegócio no âmbito fiscal. Portanto, o desafio será ainda maior em 2021 para que medidas fora do campo não aniquilem os resultados a serem obtidos da porteira para dentro, evitando que a mão pesada do Estado estrangule a galinha dos ovos de ouro em plena praça pública.
*Manuel Eduardo C. M. Borges, advogado especialista em Direito Tributário pela FGV/SP; Marcelo Guaritá B. Bento, bacharel e mestre em Direito pela PUC/SP, ambos sócios do escritório Peluso, Stüpp e Guaritá Advogados
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