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Opinião|Anistias, imunidades e os privilégios dos partidos no Brasil

É certo que os partidos são muito importantes na democracia brasileira. Contudo, isso não significa uma carta-branca para a violação de decisões judiciais. É no mínimo incoerente que se debata tanto sobre gastos públicos e privilégios fiscais enquanto os próprios agentes públicos não são considerados nessa discussão

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convidado
Por Ana Claudia Santano

Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) n° 9, que tem uma trajetória conturbada desde a sua proposição, em 2023. O próprio registro da linha de tramitação dessa PEC, constante na página web da Câmara, demonstra isso ao apontar que, originalmente, a sua ementa (uma espécie de resumo do tema que o projeto pretende modificar ou inserir na legislação) era “Altera a Emenda Constitucional nº 117, de 5 de abril de 2022, quanto à aplicação de sanções aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições, bem como nas prestações de contas anuais e eleitorais”, mas agora é outra: “Impõe aos partidos políticos a obrigatoriedade da aplicação de recursos financeiros para as candidaturas de pessoas pretas e pardas; estabelece parâmetros e condições para regularização e refinanciamento de débitos de partidos políticos; e reforça a imunidade tributária dos partidos políticos conforme previsto na Constituição Federal”.

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Em ambos os casos, a temática se centra em uma nova anistia dos partidos com relação às suas obrigações econômicas, seja com candidaturas femininas, ou com candidaturas negras, ou até mesmo dívidas ordinárias, como previdenciárias, multas, etc. É notável o esforço para não se utilizar a palavra “anistia”, uma vez que ela tem uma simbologia mais marcada. A anistia se transformou em “imunidade tributária” ou “condições para regularização e refinanciamento”. Não importa o termo, o sentido é o mesmo: o de conceder aos partidos uma posição privilegiada no ordenamento jurídico brasileiro, tanto como um agente político quanto como uma pessoa jurídica de direito privado, como o Código Civil os conceitua.

Enquanto o país se debruçava na quase interminável reforma tributária, líderes partidários acharam por bem reativar a tramitação da PEC 9, congelada desde 2023 por pressão da sociedade civil, muito atenta e reativa aos movimentos do Congresso Nacional. O alvo sempre é uma das ações afirmativas existentes no campo do direito eleitoral, seja o financiamento público de campanhas femininas ou de pessoas negras.

A justificativa também se repete, a de que a responsabilidade por tudo isso seria da Justiça Eleitoral, que obriga os partidos ao cumprimento de tais ações afirmativas sem que exista o respeito ao princípio da anualidade. Essa regra constitucional impõe que toda lei que altere o processo eleitoral deve ser aprovada um ano antes da data de realização das próximas eleições, algo que, segundo o Congresso Nacional, não é observado pelo Tribunal Superior Eleitoral ou pelo Supremo Tribunal Federal, quando decidem algo nesse sentido.

É no mínimo curioso que, ao se estar debatendo a reforma tributária, os partidos entendam por bem aprovar um status que os diferencia em muito das obrigações fiscais que o resto da sociedade tem. Todas e todos devemos pagar impostos, pagar nossas dívidas ou os juros que se originam do nosso não pagamento no prazo. Para o resto da sociedade, não há margem de negociação para abater estes débitos, mas agora, considerando o texto aprovado da PEC 9, para os partidos há.

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E não só isso: houve inclusive uma ampliação da imunidade tributária que ainda não se sabe ao certo o tamanho, justamente porque o texto aprovado é muito pouco claro nesse sentido. Ou seja, na mesma PEC, temos um perdão de dívidas que não se sabe o real valor e impacto no erário para os partidos; um aumento sem precedentes da imunidade tributária para as agremiações, algo que já estava na Constituição; e ainda condições generosas à renegociação de dívidas, que alcançam inclusive decisões judiciais transitadas em julgado.

Ao que tudo indica, a tentativa de atribuir a responsabilidade de todo esse cenário à Justiça Eleitoral pode ser apenas uma cortina de fumaça para que os partidos sigam em uma posição privilegiada no Brasil, para muito além do que dispôs a Constituição Federal de 1988.

É certo que os partidos são muito importantes na democracia brasileira, devendo, assim, serem protegidos, preservados e mantidos. Contudo, isso não significa uma carta-branca para a violação de decisões judiciais; para o abuso do poder de sua presença no Congresso Nacional; bem como do desvirtuamento da função legislativa, aprovando normas que não condizem com o resto do ordenamento jurídico. É no mínimo incoerente que se debata tanto sobre gastos públicos e privilégios fiscais enquanto os próprios agentes públicos não são considerados nessa discussão.

Além disso, atualmente o sistema de financiamento da política no Brasil é praticamente público, não sendo isso apenas um benefício, mas sim obriga os partidos a uma série de deveres, como o do cumprimento das ações afirmativas estabelecidas; a prestação de contas e a transparência no uso desses recursos.

Aliás, foram justamente estas razões que foram expostas para a aprovação do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC) em 2017, ou seja, de que esta forte injeção de recursos públicos nas campanhas possibilitaria uma competição mais igualitária, oportunizando a renovação do ambiente político. Mais mulheres, pessoas negras e indígenas fazem exatamente esse papel de oxigenação do sistema brasileiro. Esquivar-se reiteradamente do cumprimento das ações afirmativas relacionadas a essas candidaturas nada mais revela do que a falta de disposição dos partidos em cumprir os seus deveres, desejando apenas os direitos que a lei lhes concede.

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A PEC 9 ainda precisa ser analisada pelo Senado e há tempo de interromper essa nova tentativa de dar aos partidos uma condição especialíssima na sociedade. Segundo um levantamento feito pelo Observatório de Violência Política Contra a Mulher, caso seja aprovada, a PEC 9 se somará às outras três anistias aprovadas a favor dos partidos desde 2015, todas com o mesmo objeto, ou seja, impedir a aplicação de sanções por parte da Justiça Eleitoral às agremiações que não destinaram recursos – seja do fundo partidário ou do FEFC – às candidaturas femininas. Agora, a anistia é bem mais ampla e seguramente, ainda menos justificada.

É por todo esse quadro que o Senado Federal possui diante de si uma importante oportunidade de frear esse movimento injustificável por parte dos líderes partidários. Esperamos poder contar com a sobriedade de todos os senadores para a não aprovação dessa PEC. A Constituição Federal agradece.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

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Ana Claudia Santano
Doutora e mestra em Ciências Jurídicas e Políticas, Universidad de Salamanca, Espanha. Estância pós-doutoral em Direito Constitucional na Universidad Externado (Colômbia), e em Direito Público Econômico, na PUCPR. Professora de Direito Constitucional, Eleitoral e Direitos Humanos em diversas instituições no Brasil e na América Latina. Coordenadora-geral da organização Transparência Eleitoral Brasil, integrante do Observatório de Violência Política Contra a Mulher. Foto: Inac/Divulgação
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