Em 4 de setembro de 2023 instalou-se a Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, com a finalidade de apresentar, em tempo recorde, no prazo de 180 dias, anteprojeto de Lei para revisão e atualização do Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002). Certamente entre os trending topics jurídicos do momento, a minuta de texto final ao anteprojeto, apresentada em 26 de fevereiro de 2024, dispõe de revisão significativa no âmbito do Direito Civil, com pretensões de atualização na parte geral (pessoas, bens e fatos jurídicos) e especial (obrigações, responsabilidade civil, contratos, direito da empresa, direito das coisas, direito de família, direito das sucessões) e, ainda, na ousada e (des)necessária criação de um novo Livro no Código Civil, de direito digital, o que vem sendo alvo de críticas não apenas pela impossibilidade temporal para o devido aprofundamento dos debates, mas, principalmente, pela insegurança jurídica que diversas sugestões de alterações suscitam.
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É o caso do “rebaixamento” da posição do cônjuge e do companheiro quando da morte do parceiro afetivo, aos quais pretende-se a realocação para o terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, ressuscitando o que era previsto na Lei Feliciano Pena de 1907, onde o cônjuge sobrevivente somente herdava na falta de descendentes e ascendentes. Tal iniciativa altera profundamente a previsão atual do artigo 1.829 do Código Civil e dá as costas para um fato que não deixou de ser uma dura realidade: a vulnerabilidade econômica nas relações afetivas, diante da desigualdade econômica da mulher. Uma coisa é possibilitar que os pares escolham por não concorrerem com os descendentes e/ou ascendentes. Outra, muito diferente – pretendido pelo anteprojeto –, é impor isso como regra e condicionar a participação do parceiro afetivo na herança à realização de testamento, ignorando a vulnerabilidade econômica nas relações afetivas.
Um segundo ponto diz respeito a questões que ficaram fora. Os artigos que tratam de regulamentar, finalmente, as técnicas de reprodução humana assistida são mera reprodução do que já orientam as Jornadas de Direito Civil e o Conselho Federal de Medicina. Autoriza-se a barriga solidária (que deve pertencer à família de um dos parceiros, com parentesco de até quarto grau), mas proíbe a barriga de aluguel (hipótese em que uma pessoa cede seu corpo para gerar o filho de outro casal, mediante pagamento pelo serviço prestado).
Tal restrição torna a barriga de aluguel acessível apenas para aqueles que têm recursos para buscar essa opção em países onde a prática é legal, criando desigualdade no acesso aos serviços reprodutivos. Além da proibição violar a autonomia reprodutiva das mulheres, ainda leva a práticas clandestinas (a exemplo da inseminação caseira ou auto inseminação) e ilegais, onde a falta de regulamentação pode resultar em abusos e exploração, tanto de gestantes quanto de futuros pais. A chancela do texto projetado à proibição da barriga de aluguel no Brasil não apenas inviabiliza a garantia constitucional da livre iniciativa familiar, mas também discrimina grande parte da população que não tem acesso a clínicas de reprodução assistida, em razão do alto custo financeiro desses procedimentos.
O terceiro e último ponto figura, certamente, entre os mais polêmicos: alienação parental. Hoje regulamentado pela Lei n. 12.318/2010, o tema divide opiniões: há aqueles que defendem a revogação da lei, em razão de suposta discriminação contra mulheres e meninas, imputando à legislação a perda da base de residência dos filhos em favor do pai abusador; e há aqueles que advogam pela sua manutenção, como meio eficaz de assegurar e proteger crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade em seu contexto familiar, em relação a atos praticados por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância, que impliquem em violência psicológica e abuso moral. Ouso complementar que a Lei n. 12.318/2010 não apenas apresenta-se como instrumento de proteção à criança e ao adolescente, totalmente distante de qualquer discriminação de gênero, mas também representa um avanço na compreensão da importância e da complementaridade das funções parentais.
E justamente sobre este aspecto, o anteprojeto de atualização e revisão do Código Civil silenciou. No Livro que trata do Direito de Família, em especial nas questões relativas à guarda e à convivência, institutos que são diretamente afetados por condutas alienadoras, a Comissão não propôs nenhuma novidade ou alteração que pudessem reforçar o viés protetivo às crianças e adolescentes frente a investidas alienadoras por parte de algum familiar. A escolha pela não incorporação de medidas que visem inibir e atenuar atos de alienação parental no texto projetado não apenas dá palco a distorções sobre a sua aplicação prática, mas também desasiste a maior vítima desse tipo de abuso: as crianças e os adolescentes.
Sempre é bom lembrar que o Código Civil de 2002 passou quase três décadas em tramitação no Congresso Nacional. Essa demora importou em uma maior maturação das discussões que envolviam a nova legislação e, consequentemente, a vida das pessoas. Portanto, ainda há – e assim espera-se – um longo caminho a ser percorrido para o necessário aprimoramento e adequação social do texto projetado, especialmente no que diz respeito às duas áreas mais sensíveis do Direito Civil: o Direito de Família e das Sucessões.
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