A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) é um importante marco na legislação brasileira voltada para a proteção das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Desde sua promulgação, a lei tem sido fundamental na conscientização da sociedade sobre a gravidade desse tipo de violência e na implementação de políticas públicas para combatê-la. Diante das constantes mudanças sociais e jurídicas, faz-se necessário promover ajustes na legislação, visando aprimorar a proteção e garantir direitos às mulheres em situação de violência.
No entanto, com o avanço da sociedade e do entendimento jurídico, tornou-se essencial discutir a aplicação da Lei Maria da Penha em relações homoafetivas, a fim de garantir a proteção igualitária a todas as vítimas de violência doméstica, independentemente da orientação sexual.
Com base na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277, a união homoafetiva foi reconhecida como instituto jurídico e passou a ser admitida como uma nova modalidade de entidade familiar. Diante dessa nova realidade, torna-se imperativo garantir a proteção contra casos de violência nesse contexto.[1]
A jurisprudência tem se consolidado no sentido de estender a aplicação da Lei Maria da Penha às relações homoafetivas, reconhecendo que a violência doméstica e familiar pode ocorrer em qualquer tipo de relacionamento, seja ele hetero ou homoafetivo. Isso significa que as mulheres em relacionamentos homoafetivos também podem acionar os mecanismos de proteção e amparo previstos na lei.
O TJDFT já tem entendimento nesse sentido:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. RELAÇÃO ÍNTIMA DE AFETO ENTRE MULHERES. NÃO ACEITAÇÃO DO FIM DO RELACIONAMENTO. PERSEGUIÇÃO, INTIMIDAÇÃO E CONTROLE. OBJETALIZAÇÃO. VULNERABILIDADE CONFIGURADA. VIOLÊNCIA MOTIVADA PELO GÊNERO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESPECIALIZADO. RECURSO PROVIDO. 1. É possível a incidência dos preceitos da Lei n.º 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) na hipótese de violência praticada contra mulher no seio de relação íntima de afeto homossexual, acaso caracterizada a hipossuficiência e/ou a vulnerabilidade da vítima. 2. Na hipótese, após breve namoro, com coabitação de uma semana, a ré demonstrou intensa perseguição, intimidação e controle sobre a vítima por não aceitar o termino da relação afetiva, tratando a ex-parceira como sua propriedade sexual, em verdadeira situação de objetalização. Nesse contexto, a fim de sair desse ciclo de violência, a ofendida, após buscar efetivo auxílio das autoridades públicas, alterou sua residência, seu trabalho e seu automóvel, para evitar que a ré, conhecedora de toda a sua rotina, a encontra-se novamente. 3. Com efeito, apesar da alegada independência financeira e emocional da ofendida, ou da constatação de porte físico assemelhado entre as envolvidas, denota-se, claramente, a repercussão psíquica da violência na vítima, tratada como objeto no seio da relação afetiva em questão, ante o sentimento de posse contra ela nutrido, tudo a evidenciar, sem qualquer dúvida, sua fragilidade e vulnerabilidade dada a condição de mulher, dentro da relação de poder e controle a que submetida. 4. Presentes todos os requisitos exigidos para configuração de delito cometido em contexto de violência doméstica contra a mulher, aplicam-se as regras da Lei n.º 11.340/2006 (art. 5º, III e parágrafo único, c/c art. 7º, II), sendo o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra mulher de Brasília competente para processar e julgar o feito. 5. Recurso conhecido e provido.[2]
A aplicação igualitária da Lei Maria da Penha em relações homoafetivas é um avanço fundamental para a proteção de todas as mulheres, independentemente de sua orientação sexual. A violência doméstica não faz distinção de gênero ou orientação sexual, e é papel do Estado e do sistema jurídico garantir a efetividade da lei e a segurança de todas as vítimas.
Além disso, a aplicação da Lei Maria da Penha em relacionamentos homoafetivos reforça o princípio da dignidade humana e da igualdade perante a lei (art. 5º, I da CF[3]). As mulheres em relacionamentos homoafetivos também têm direito a uma vida livre de violência e a todas as medidas de proteção e assistência previstas na legislação.
Ao abordar a questão do gênero feminino, vai-se além do conceito biológico e adentra-se à concepção sociológica de gênero. Nesse sentido o entendimento de Maria Berenice Dias, Desembargadora aposentada do TJRS:
Pelo que se depreende de seu texto, não há dúvida de que a Lei Maria da Penha aplica-se a todas as relações de violência de gênero, sempre que presentes um dos contextos nela mencionados (domiciliar, familiar em uma relação intima de afeto), mesmo que o sexo biológico da vítima seja masculino, desde que, esteja em uma situação que desempenhe o papel social atribuído (e cobrado das) às mulheres (dominação, subjugação).[4]
A aplicação da Lei Maria da Penha em relações homoafetivas representa um importante passo na busca pela proteção igualitária contra a violência doméstica. O reconhecimento de que a violência não faz distinção de orientação sexual e que todas as mulheres têm direito à proteção legal é uma conquista para a sociedade como um todo.
No entanto, é fundamental que essa ampliação da aplicação da lei seja acompanhada por políticas públicas efetivas, que promovam a conscientização, a prevenção e o combate à violência doméstica em todos os tipos de relacionamentos. Além disso, é importante que os profissionais do sistema de justiça estejam preparados para lidar com a complexidade e particularidades das relações homoafetivas, garantindo um atendimento sensível e eficiente às vítimas.
A igualdade perante a lei deve ser um princípio norteador em todas as esferas jurídicas, e a aplicação da Lei Maria da Penha em relações homoafetivas reforça esse compromisso. A luta contra a violência doméstica é uma luta de toda a sociedade, e é necessário que todos os setores se empenhem em garantir a proteção e a segurança de todas as mulheres, independentemente de sua orientação sexual.
*Rafael Ferracina, sócio da Ferracina, Girão Maia e Rodrigues Alves Advogados, LL.M. em Direito Penal Econômico, membro da Comissão de Ciências Criminais da OAB/DF e membro da Abracrim/DF - Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas
[1] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.277 DISTRITO FEDERAL. Disponível em:https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>. Acesso em: 9 jun 2023.
[2] Acórdão 1301119, 07232110920208070016, Relator: CRUZ MACEDO, Primeira Turma Criminal, data de julgamento: 19/11/2020, publicado no PJe: 21/11/2020. Disponível em:https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordao&controladorId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.ControladorBuscaAcordao&visaoAnterior=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordao&nomeDaPagina=resultado&comando=abrirDadosDoAcordao&enderecoDoServlet=sistj&historicoDePaginas=buscaLivre&quantidadeDeRegistros=20&baseSelecionada=BASE_ACORDAO_TODAS&numeroDaUltimaPagina=1&buscaIndexada=1&mostrarPaginaSelecaoTipoResultado=false&totalHits=1&internet=1&numeroDoDocumento=1301119>. Acesso em: 02 jun 2023.
[3] "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Disponível em:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 9 jun 2023.
[4] DIAS, Maria Berenice. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 426. Disponível em:https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/100036697/v2/document/100251415/anchor/a-100251415>. Acesso em: 9 de jun 2023.
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