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Aquino tem razão

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Por Janaína Paschoal
Janaína Paschoal. Foto: SERGIO CASTRO/ESTADÃO

No final de 2022, com Lula eleito, a Comissão criada para atualizar a lei referente ao impeachment entregou o Anteprojeto ao Senado.

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Atualmente, além dos dispositivos constitucionais, o impeachment é disciplinado pela Lei 1.079/50, que foi suficiente para afastar dois Presidentes da República no passado recente. A esse respeito, imperioso consignar ter se tratado de processos públicos, que tramitaram na Câmara Federal e no Senado Federal, com respaldo do Supremo Tribunal Federal.

No Brasil, ainda tem força a ideia de que leis antigas são por princípio ultrapassadas. No entanto, como bem ensina São Tomás de Aquino, com o tempo, as leis vão sendo adaptadas à realidade e só é desejável sua revisão se os bônus da mudança se revelarem superiores aos ônus da alteração.

Independentemente dessa discussão de cariz mais filosófico, que isoladamente já renderia uma tese, fato é que o anteprojeto entregue ao Senado, salvo melhor juízo, representa um retrocesso, sobretudo em termos de cidadania. A seguir, serão destacados alguns pontos que implicam preocupação.

Na sistemática vigente, o impeachment é remédio constitucional de que qualquer cidadão pode lançar mão. Se aprovado o anteprojeto, perderemos esse instrumento, pois o artigo 26 é bastante claro ao prever que a legitimidade para oferecer denúncia por crime de responsabilidade se restringe aos Partidos Políticos com representação no Poder Legislativo, à Ordem dos Advogados do Brasil, às entidades de classe e às organizações sindicais.

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O dispositivo até gera ilusão, ao asseverar que os cidadãos também estão aptos a denunciar; entretanto, para que a petição possa ser apresentada, devem estar preenchidos os requisitos da iniciativa legislativa popular.

Ocorre que esses requisitos são praticamente impossíveis de serem cumpridos, dado que ao menos 1% do eleitorado nacional precisa subscrever o projeto, devendo esses cidadãos estar necessariamente distribuídos por 5 estados da federação, representando não menos do que 0,3% do eleitorado local.

Já houve casos de iniciativas populares abraçadas por parlamentares, mesmo sem a observância de todos os requisitos formais. Sob o ponto de vista técnico, um Deputado ou Senador assumiu a autoria do projeto. Esse tipo de convalidação, entretanto, é inadmissível relativamente a uma denúncia por crime de responsabilidade, justamente por se tratar de peça de acusação.

No que concerne à legitimidade passiva, o anteprojeto também traz novidades questionáveis, como a de incluir magistrados e membros do Ministério Público como potenciais autores de crimes de responsabilidade, prevendo como tais comportamentos já puníveis à luz da legislação penal e administrativa. Ademais, se convolado em lei, integrantes do Conselho Nacional de Justiça, do Conselho Nacional do Ministério Público e os Comandantes das Forças Armadas serão passíveis de sofrer impeachment.

Ao restringir a legitimidade ativa e alargar a passiva, o anteprojeto desnatura por completo o próprio instituto do impeachment, blindando as altas autoridades hoje alcançáveis. Como se não bastasse, o artigo 29, parágrafo 6º., ameaça os denunciantes, ao consignar que eventual abuso no oferecimento da denúncia ensejará envio de documentação ao Ministério Público, para fins de responsabilização criminal. O anteprojeto ainda intriga ao levar para o Poder Judiciário a competência para julgar processos de impeachment em situações diversas (artigo 24, incisos III, IV, V e VI).

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Para além das mudanças concernentes às legitimidades ativa e passiva e à competência, as adaptações pertinentes ao que materialmente se verifica como crime de responsabilidade não se revelam melhores.

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Com efeito, a Lei 1.079/50 é concisa, clara, objetiva; Já o anteprojeto, que busca alterá-la, é vago e contempla comportamentos já proibidos e sancionados em outras esferas. Muito embora traga imputações que visam proteger a Responsabilidade Fiscal, o faz apenas de forma genérica, tendo sido praticamente extirpados os crimes que levaram ao impedimento da ex-Presidente Dilma. Curiosamente, o anteprojeto prevê como criminosos vários comportamentos atribuídos por opositores ao ex-Presidente Jair Bolsonaro.

Em seu Título I, Capítulos VI e VII, a lei atual pune: ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal; deixar de promover ou ordenar na forma da lei, o cancelamento, a amortização ou a constituição de reserva para anular os efeitos de operação de crédito realizada com inobservância de limite; deixar de promover ou de ordenar a liquidação integral de operação de crédito por antecipação de receita orçamentária; ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização de operação de crédito com qualquer um dos demais entes da Federação, captar recursos a título de antecipação de receita de tributo ou contribuição cujo fato gerador ainda não tenha ocorrido; contrair empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal, dentre outros.

Pois bem, se aprovado o anteprojeto, praticamente todos os comportamentos destacados seriam substituídos pelo crime de descumprir deliberada ou reiteradamente a legislação orçamentária e de responsabilidade fiscal.

Por outro lado, o anteprojeto cria os crimes de responsabilidade consubstanciados em divulgar, direta ou indiretamente, por qualquer meio, fatos sabidamente inverídicos, com o fim de deslegitimar as instituições democráticas; atentar, por meio de violência ou grave ameaça, contra os Poderes constituídos; decretar estado de defesa, estado de sítio, intervenção federal, ou empregar as Forças Armadas em operação de garantia da lei e da ordem, sem a observância dos requisitos constitucionais e legais; praticar quaisquer dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, definidos na legislação penal; deixar de adotar as medidas necessárias para proteger a vida e a saúde da população em situações de calamidade pública. O rol é extenso e pode ser confirmado nos artigos 7º. e 8º da proposta em análise.

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A Comissão responsável pelos estudos que resultaram na propositura foi criada e trabalhou durante o Governo Bolsonaro e, como já dito, ao que parece, pensou em novos delitos tomando por base as críticas mais frequentes ao comportamento do mandatário do momento.

Não obstante, as figuras delituosas sugeridas, em tese, poderiam ser aplicadas ao atual Presidente, na medida em que, em eventos oficiais, alardeia ser golpe constitucional processo de impeachment, que teve trâmite perante o Congresso Nacional, sob a presidência do Supremo Tribunal Federal. Afinal, por mais que seja a narrativa criada pelo seu partido, não deixa de deslegitimar as instituições democráticas, mediante a divulgação de fatos sabidamente inverídicos.

Vivemos em uma Democracia. É salutar que todas as ideias tenham espaço para serem debatidas, mas, em seara tão delicada, deve-se ter cautela redobrada, independentemente de quem seja potencialmente alcançado ou exculpado pelas almejadas alterações. Reitero meu mais profundo respeito pela Comissão e seus membros, mas, como boa conservadora que sou, melhor ficar com a lei que temos a mergulhar em uma aventura com consequências que podem surpreender até mesmo os defensores do texto.

*Janaína Paschoal, deputada estadual (até 14/3). Depois, advogada e professora de Direito na USP

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