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Opinião | Artemisia Gentileschi: pincéis de justiça e superação

Um olhar contemporâneo sobre o julgamento de um caso de estupro

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convidado
Por Fernanda Perregil
Atualização:

I. Da genialidade à resiliência

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Artemisia Gentileschi nasceu em Roma, no dia 8 de julho de 1593. Filha primogênita de um pintor, ainda jovem já mostrava seu talento e a forte influência de seu pai. Sua primeira obra de destaque, “Susana e os Velhos”, foi pintada quando tinha 17 anos, marcada por um estilo realista e impactante que revelaria sua admiração por outro artista, Caravaggio. Assim, suas pinturas eram definidas por um forte contraste de cores, enfatizando as luzes e as expressões faciais dos personagens.

Hoje, Artemisia é considerada uma das maiores pintoras do período barroco, inclusive por ser a primeira mulher incluída na Academia de Belas Artes de Florença. Contudo sua vida foi atravessada por inúmeros conflitos em um mundo extremamente machista, em que mulheres não podiam desenvolver qualquer talento artístico, e caso tentassem, nunca teriam a mesma importância dos homens da época.

Até aquele momento, a arte era monopólio do masculino e, por isso, a artista sofreu com a invisibilização de sua obra durante toda a vida . Não por coincidência algumas de suas obras teriam sido atribuídas ao seu pai, já que era apenas aceitável e adequado que a arte fosse consagrada pelos pincéis manejados pelas mãos de um homem.

Além dessas dificuldades, Artemisia passou por algo que marcou sua vida e a mudou completamente, impactando até mesmo sua expressão artística. No ano de 1611, ela foi vítima de um estupro cometido por um homem que trabalhava no ateliê de seu pai e frequentava sua casa. Seu nome era Agostino Tassi.

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Pelos registros históricos, é sabido que ao denunciar o ocorrido, Artemisia teve que lidar com a exposição e humilhação, sofrendo com o julgamento social da época, que não só transferia à mulher a culpa pela violência sofrida, como também a colocava em um lugar de “impureza” dentro de contextos religiosos e sociais – algo que hoje é identificado como um processo de revitimização de mulheres vítimas de crimes sexuais.

Artemisia buscou a justiça incansavelmente, tendo que conviver com seu agressor livre e com a opinião pública, que acreditava na existência de uma relação consensual. Outros dados históricos apontam que ela foi submetida a outras violências durante o julgamento do caso, seja pela realização de exames físicos invasivos para identificar a violência sexual, seja por ter sido desacreditada em vários momentos do processo.

Enfim, Agostinho foi condenado em 27 de novembro de 1612. Obviamente que sua condenação foi apenas simbólica, já que nunca foi preso, sua pena se restringiu à possibilidade de trabalhos forçados ou à obrigação de abandonar Roma.

Após isso, Artemisia ressignificou sua experiência trágica por meio da arte e, a partir de então, suas obras foram caracterizadas por heroínas bíblicas e mitológicas, como um arquétipo empoderador, o que deu origem a sua mais importante obra “Judite decapitando Holofernes”. Além desta, foram pintadas outras telas a partir desta mesma cena de decapitação. Vários especialistas interpretaram que a ênfase dada em suas obras fazia alusão à punição de seu agressor.

Mas foi apenas no século XX, mais precisamente na década de 1970, fruto do movimento feminista que buscou resgatar as mulheres e seus talentos do processo de invisibilização e apagamento, é que as obras de Artemisia ganharam o mundo, e ela foi enaltecida como uma das maiores artistas barrocas.

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II. O julgamento nos dias de hoje

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Por um olhar contemporâneo, logo se observa que no Brasil, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) , a violência sexual ainda é um grave problema, que chama atenção pelo número de casos por ano, algo em torno de 820 mil. Isso representa dois casos por minuto, pensando que a maior parte das vítimas são mulheres, assim como Artemisia.

Para as vítimas existem consequências que afetam sua saúde mental, como no caso do Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT ), causado por uma situação de intenso sofrimento que desencadeia uma série de problemas psíquicos, como depressão, ansiedade, irritabilidade, desesperança, distúrbios de humor e até ideações suicidas. Por isso, é importante que o sistema criminal permita uma punição compatível com todas as consequências sofridas pela pessoa vítima.

Assim, a maior parte dos países já enquadra esta conduta como crime e pune com a prisão. O Código Penal brasileiro prevê o crime de estupro no artigo 213, punindo com reclusão de 6 a 10 anos, agravado se a conduta resultar em lesão corporal grave ou se a vítima for menor de 18 ou maior de 14 anos, aumentando a pena de 8 a 12 anos.

Porém, o primeiro desafio a ser enfrentado pela vítima é a decisão de comunicar à autoridade policial, inclusive para iniciar a colheita de provas materiais e a realização do exame de corpo de delito – lembrando que a palavra da vítima tem muita importância neste tipo de crime. Hoje, o exame de corpo de delito é completamente diferente do que era feito no século XVII. Atualmente, ele é conduzido por profissionais técnicos que aferem vestígios, como marcas e sinais, e realizam procedimentos menos invasivos.

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Outro comparativo é o fato de que a palavra da vítima tem valor probatório. O nosso Judiciário tem acolhido o depoimento da vítima de estupro ou assédio sexual como prova, exatamente pela forma clandestina com que estas violências são praticadas, sempre às escondidas, dificultando a existência de testemunhas ou de outros vestígios.

Mais um aspecto é que, em 23/05/2024, o STF decidiu, na ADPF 1.107, que a mulher vítima de violência sexual não pode mais ser desqualificada ou questionada sobre o seu estilo de vida durante o julgamento. Estando vedado que aspectos pessoais da vítima sejam levados em consideração no momento da aplicação da pena. Isso representou um enorme avanço em prol da proteção da mulher, já que o comportamento sexual da mulher vítima era utilizado como estratégia da defesa para absolver ou mitigar o grau de culpabilidade do agressor.

Apesar destes progressos, ainda continuam surgindo tentativas de retrocessos, como é o caso do PL 1904 que objetiva punir a pessoa vítima de violência sexual que passe por algum procedimento de aborto, hoje enquadrado como hipótese do aborto legal.

A despeito disso, são evidentes os avanços na punição de atos contra a liberdade sexual, não só oferecendo à sociedade um ordenamento jurídico que, de fato, puna o agressor, mas que também proteja a vítima em todas as fases do processo. O objetivo é evitar que a vítima sofra novas violências durante o julgamento do caso, como aconteceu com Artemisia.

Assim, é possível que, hoje, Artemisia tivesse uma decisão mais justa e não sofresse todas as inúmeras violências durante o julgamento do seu caso. Contudo, é inegável que a força de superação e resiliência desta artista fez com que ela usasse a ARTE para buscar JUSTIÇA. Arte que não só a consagrou como uma das maiores artistas de seu tempo, mas a tornou um símbolo do feminismo no mundo.

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Fernanda Perregil
Advogada e cofundadora da P2 InterDiversidade, especialista em direito do trabalho e direitos humanos, professora do Insper. Foto: Arquivo pessoal
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