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Autocontenção judicial ou perda de eficiência administrativa

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Por Marcelo Kokke
Marcelo Kokke. Foto: Divulgação

A conformação contemporânea dos papéis institucionais de atuação entre Poder Judiciário, Poder Legislativo e Poder Executivo exige reflexões em termos de conformação constitucional e autocrítica em relação ao desenvolvimento e limites de cada um dos Poderes. Embora o tema dos limites do Poder Judiciário seja constantemente enviesado em discussões que visam a conotar aspectos políticos rotulados como de "direita", de "esquerda" ou de "centro", o fato que se tem é uma constante e silenciosa exorbitância invasora do Poder Judiciário sobre esferas próprias do planejamento administrativo. fato que abre espaço aos mais diversos tipos de crítica.

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Em termos científicos e críticos, é justamente a ausência de autocontenção do Poder Judiciário que alimenta ou quando menos abre portas a discursos que contrastam ou visam a inibir a própria função jurisdicional. Em termos claros, situações de transbordamento de atribuição do Poder Judiciário, antes de contribuir para com o fluxo regular do Estado Democrático de Direito, abrem espaço para questionar o próprio exercício jurisdicional. O fenômeno transparece em diversas partes do globo, mas ganha especial teor de relevância no Brasil.

A Administração Pública Federal, assim como as estaduais, as municipais e a distrital, possui demarcação normativa e disciplinadora de papéis e funções. Inclusive, o próprio Poder Judiciário possui essa delimitação. Ininteligível seria a qualquer Tribunal que um advogado distribuísse uma ação de divórcio na Justiça Federal com a argumentação de que a Vara de Família Estadual estaria congestionada. Igualmente, ininteligível seria a postura de uma pessoa que tenha furtada sua carteira e documentos na rodoviária que demandasse uma força-tarefa da Polícia Federal para atuar em seu caso. Mais. Não seria crível que alguém demandasse que um Procurador da República, membro do Ministério Público Federal, participasse de uma ação de alimentos em dada Comarca, que por acaso esteja sem seu Promotor de Justiça.

Em momento algum se reduz a relevância de cada situação. Entretanto, enfatiza-se a existência institucional e normativa de órgãos e entidades próprias para cada uma das atividades ou funções citadas. Desviar um agente competente para outra atividade é comprometer sua função própria definida constitucionalmente. Embora a obviedade nos contextos citados seja solar, em situações idênticas, mas quando envolvida a Administração Pública, por fatores inexplicáveis, tem-se uma ausência de coerência do Poder Judiciário e do próprio Ministério Público.

É usual a prática do Judiciário Estadual assim como do Ministério Público Estadual em demandar a atuação do IBAMA, ICMBio e do IPHAN, órgãos federais, em atividades estranhas às suas funções, que devem ser desempenhadas pelos órgãos ambientais estaduais e municipais. Também se verificam diversos e incompreensíveis casos nos quais Judiciário e Ministério Público demandam a atuação de servidores federais como verdadeiros peritos de suas ações judiciais, em claro desvio de função.

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Nesse ponto, a conjuntura brasileira permite falar do Poder Judiciário e do Ministério Público como agentes provocadores da ineficiência administrativa. Afinal, quando por seu comando servidores públicos e a estrutura da Administração Pública é desviada de seu planejamento e volvida para casos que sequer são de sua atribuição ocorre uma ausência no cumprimento de suas próprias funções institucionais. Grande parte das vezes as demandas são feitas em sincero intento de eficiência em relação a um processo judicial específico. Mas é justamente a falta de perspectiva global e institucional de atribuições que converte a boa intenção e empenho em causa de desorganização.

A par disso, os casos isolados de perturbação do planejamento administrativo convertem-se em ondas de insatisfação que caminham ascendentemente no Poder Executivo e Legislativo em verdadeiro efeito backlash. O descontentamento e as situações de desorganização provocadas convertem-se em fonte de ebulição que por vezes desencadeia questionamentos contra o próprio Poder Judiciário e Ministério Público e a alimentar discursos de deslegitimação. Em outras palavras, a ausência de autocontenção abre flancos de questionamento à arquitetura do Estado Democrático de Direito.

Na data de 22 de março de 2023, foi publicada a Portaria Normativa AGU 89. A Portaria institui o Grupo Estratégico Ambiental AGU-Recupera. O planejamento prevê articulação entre a Advocacia-Geral da União, o IBAMA, o ICMBio e o IPHAN para garantir fiscalização, reparação de danos ambientais e recuperação de créditos que tenham por objeto a proteção e a restauração dos biomas e do patrimônio cultural brasileiros. Em planejamento precursor, a Administração Pública atuará em casos prioritários para recuperação de danos ambientais na Amazônia, na Mata Atlântica, no Cerrado, na Caatinga, nos Pampas, no Pantanal, além de atuação nas cidades históricas brasileiras, em favor do patrimônio cultural.

O sucesso do planejamento promissor depende da conscientização do Poder Judiciário e do Ministério Público quanto aos focos prioritários de atuação. Sem a autocontenção judicial e inclusive do Ministério Público, servidores que estiverem engajados no planejamento serão deslocados, por foça de determinações judiciais ou de ofícios, para verificação de tapumes em lotes, avaliação de cortes de árvores em ruas, conferência de planos de recuperação de área degradada de baixa escala, dentre outros casos de atribuição estadual e municipal. Sem uma efetiva autocontenção judicial a gestão administrativa é convertida em congestão democrática e institucional, comprometendo a própria proteção do meio ambiente natural e cultural.

*Marcelo Kokke, pós-doutor em Direito Público - Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela - ES. Procurador federal da Advocacia-Geral da União. Coordenador do Centro de Estudos da Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (ANAFE)

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