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Opinião|Bem comum, domínio público e um rato traquina

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convidado
Por Rodrigo Vieira*

Vivemos em uma época na qual os regimes de propriedade são tidos como inquestionáveis ou inevitáveis, escondendo ou ofuscando práticas compartilhadas e comunais ou coisas cujas características são de bens comuns. Quando não, há igualmente um inegável avanço da ideia de propriedade exclusiva em direção ao comum. No âmbito do imaterial, ou seja, das informações, dos conhecimentos, das obras intelectuais, a ideia dos bens comuns é até bem recente comparada à dos materiais, como a proteção e gestão de territórios e recursos ambientais. Acesso aberto, software livre, licenças abertas são capítulos recentes da história da propriedade intelectual que confrontam suas origens privatistas, proeminentes desde o século XIX.

Mickey Mouse em desenho de 1928 Foto: Disney/Divulgação

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A alusão à razão histórica mais difundida para concessão dos direitos autorais é que eles não só estimulariam os autores a continuarem criando como promoveriam a cultura. Ainda assim, a grande crítica que os direitos autorais sofrem permanece sendo a de que privilegiam mais os titulares que os adquirem do que propriamente os autores. Todavia, pelo menos no seu aspecto patrimonial, econômico, são temporários, limitados no tempo. Ao contrário da autoria, não são eternos. O monopólio soberano dos autores tem um fim definido por lei. A isso chamamos de domínio público, quando, após a data de publicação/divulgação da obra ou da morte dos autores, a depender do sistema jurídico, a obra intelectual se torna um bem cultural comum, livre, a fim de que se estimule a criação de outras novas ou derivadas. Segundo o jurista brasileiro Sérgio Branco, isso também pode se dar de maneira voluntária, antes do início do prazo legal, por expressa vontade do criador ainda em vida.

A ampliação ou redução desses prazos, vez ou outra, retorna ao debate público e aos noticiários. No cenário atual, a ampliação dos prazos de proteção de obras intelectuais ainda se relaciona com o potencial comercial que essas obras possam ter. Entretanto, esses casos são exceções, não podem ser usados como regra para um universo de obras disponíveis do qual o acervo cultural humano depende para enriquecimento comum de nossa própria criatividade e reelaboração constante da originalidade. Ninguém cria como um tábula rasa.

O mito do gênio criativo e do virtuoso ignora que somos acompanhados de uma bagagem que existe antes de nós, uma herança cultural que portamos, por mais que sejamos considerados inovadores ou disruptivos em nossos campos de atuação, nas letras, nas artes, no cinema etc.

O individualismo moderno acompanhado da lógica contemporânea do empreendedor de si alimenta e reforça essa ideia de criações eminentemente exclusivistas na busca por uma inovação frequente que carregue uma marca, seja comercial ou da personalidade de seus autores.

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Em vez de nos perguntamos o que fazer com ou como enriquecer o domínio público na esteira do bem comum, estamos às voltas sempre pensando em maximizar, tonificar, a propriedade, endossando uma escassez artificial de bens que, via de regra, em especial com a digitalização, são cada vez mais ubíquos e não rivais.

Daí nascem as falsas reivindicações de autoria e titularidade, as denúncias sem fundamento de violação de direitos autorais nas plataformas, os trolls com suas notificações abusivas, o falacioso argumento da pirataria sem métodos de aferição por dados confiáveis, plataformas e agências reguladoras bloqueando ou suspendendo o acesso a arquivos digitais, canais e perfis sem o devido processo tecnológico sob o pretexto de combater infrações, o desprezo pelos direitos culturais e digitais dos usuários da internet – que também são criadores do famigerado “conteúdo” – , o desrespeito aos usos livres baseados em licenças abertas, limites e exceções e no próprio domínio público, as relações desiguais contratuais entre os intermediários das diversas cadeias produtivas das obras intelectuais e seus criadores. A lista é interminável.

Dessa vez, o ponto de pauta se volta à primeira versão de Mickey Mouse na animação Steamboat Willie de 1928, a primeira com sincronização sonora, que acaba de entrar em domínio público nos EUA.

Até 2035, outras versões audiovisuais do personagem entrarão na mesma condição. Em vez de nos preocuparmos sobre o que significa e até onde podemos ir com o ratinho da Disney, a imprensa em geral está atenta somente para os movimentos que o modelo de negócio da grande empresa de entretenimento The Walt Disney Company pode ainda fazer para barrar a queda desta versão do Mickey em domínio público.

Parece que 95 anos de exploração da animação não foram suficientes para deixarmos ela seguir nos braços do povo ou na camiseta de aficionados. Até o atual, imbricado e complexo sistema norte-americano de domínio público com um prazo quase centenário, os EUA saíram de míseros 14 anos de proteção passando por várias mudanças ampliativas.

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Desde a década de 70, a Disney e outras empresas do ramo do entretenimento fazem forte lobby para que suas criações não caíam em domínio público. O ratinho, desde os anos 80, foi “salvo” da ratoeira do bem comum pelo menos umas duas vezes, sendo frequentemente associado à causa das principais mudanças da legislação autoralista estadunidense nas últimas décadas juntamente com a internet.

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Desta vez, não houve escapatória; muito embora a empresa, que faz grandes doações políticas para o lobby legislativo de manutenção do Mickey e outros personagens em suas mãos desde a última grande alteração do prazo em 98, advirta que as outras variações do desenho não apenas são de sua titularidade como o camundongo ainda é marca registrada.

Para não ser implicante com o roedor da Disney, o recente caso da notificação de importante instituto de pesquisa pela empresa que administra o bondinho do Pão de Açúcar, por suposta utilização indevida de imagem da estrutura física integrada à paisagem de diferentes bairros e pontos turísticos do Rio de Janeiro, ilustra bem a visão maximalista dos direitos autorais. Além de o sistema teleférico carioca sequer poder ser considerado obra protegida, ainda que fosse, a própria lei admite que as criações intelectuais situadas em espaços públicos podem ser representadas livremente, inclusive por fotografias. Mais recentemente, com a ampliação dos usos das inteligências artificiais generativas e a aplicação de métodos de prospecção de dados e textos em pesquisas, também se reacendeu o debate sobre uso devido/indevido de obras como dados de entrada para aprendizado de máquina.

Enquanto alguns locais como a União Europeia pensam em pelo menos prever limitações aos direitos autorais para uma adaptação das novas tecnologias à utilização para fins de investigação científica, pipocam processos pelo mundo contra empresas desenvolvedoras de IAs que se valem dessas técnicas, por violações de direitos autorais. Sem dúvida, o caminho para a construção da ideia de bens comuns intelectuais não é nada fácil, principalmente diante do individualismo proprietário reinante. Contudo, há várias experiências colaborativas e abertas que contribuem para o desenvolvimento da cultura tanto quanto a previsão legal da proteção dos direitos autorais como um exclusivo absoluto.

O mais curioso nesta história do Mickey Mouse é que, segundo o jurista norte-americano Lawrence Lessig, a animação surgiu como paródia em desenho animado do último filme mudo do grande comediante Buster Keaton, intitulado Steamboat Bill, Jr. Ambas as produções compartilhavam a mesma inspiração musical.

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O que hoje certamente poderia, em uma ótica maximalista dos direitos autorais, ensejar acusações de violação, em especial por quem lucra com os personagens animados, antes fora “inspirado” numa prática comum – sem trocadilhos – à época. Não é nenhuma novidade que Walt Disney reelaborou histórias e personagens da cultura popular, particularmente as coletadas pelos nacionalistas e românticos alemães, os irmãos Grimm na Europa, sem pedir licença a ninguém, transformando-as em obras intelectuais lucrativas. Assim também, adaptou tantas várias obras de diversos escritores.

Bem, a transformação criativa realizada por Walt Disney, a partir do que estava em domínio público naquele tempo (ou nem isso), de certa forma, ajudou-o a consolidar seu nome, estilo, padrões e comportamentos distribuídos em filmes, muitas vezes compreendidos como propagandas e símbolos imperialistas. Agora chegou a hora de desapegar, contribuir para que outros trabalhos criativos surjam a partir do próprio ratinho, de deixá-lo seguir a vida idosa com todos (ou quem sabe aposentada), não somente labutando nos estúdios da multinacional cujo valor de mercado é de mais 150 bilhões de dólares.

No Brasil, nosso sistema funciona, regra geral, a partir da proteção da obra durante a vida do autor e pelo prazo de 70 anos após sua morte, contados do dia primeiro de janeiro do ano subsequente ao seu falecimento. No caso de fotografias e obras audiovisuais, contamos o mesmo prazo do ano posterior à data de sua primeira divulgação. A proteção é concedida às obras e autores independentemente das suas origens. Isso é importante para entendermos que, por aqui, Mickey ainda não está em domínio público. Pelo menos não o personagem em si, já que a animação em questão é obra audiovisual cujo prazo para ingresso em domínio público começa a contar da data de sua primeira divulgação, ou seja, somente a película estaria.

Ninguém lembra muito dos coautores, mas o ratinho foi criado por Walt Disney, falecido em 1966, e pelo ilustrador Ub Iwerks, que morreu em julho de 1971, depois do seu parceiro de criação. Como no Brasil o prazo de setenta anos termina somente após o falecimento do último coautor, o camundongo de Steamboat Willie estará disponível para uso livre do público nacional somente em 2042. As peripécias maximalistas do ratinho traquina nos EUA poderiam ao menos servir para que discutíssemos, em futura (urgente) Reforma estrutural da Lei de Direitos Autorais, a necessidade de diminuir o extenso prazo brasileiro, chegando – oxalá – ao mínimo dos 50 anos após a morte do autor previstos na Convenção de Berna, da qual somos fiéis signatários. O bem comum agradeceria conquanto um jubileu de ouro ainda possa significar muito tempo.

*Rodrigo Vieira, docente da graduação e da pós-graduação em Direito da UFERSA. Membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais

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