A polêmica envolvendo as bets e sua regulamentação ganhou um novo capítulo após o ajuizamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo Procurador-Geral da República, somando-se às demais ações já existentes no STF sobre o tema. São inúmeros os dispositivos apontados pela PGR como parâmetro para declaração de inconstitucionalidade da legislação. Pretendo focar em um: o pedido para que o sistema de apostas seja considerado serviço público, nos moldes das loterias.
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O debate sobre o conceito de serviço público é um dos mais candentes no direito administrativo. O direito brasileiro, em um primeiro momento, adotou a concepção francesa de serviço público, caracterizando-o como aquele serviço prestado por órgão estatal ou executado por particular, em regime de delegação do Estado. Com o passar do tempo, o pêndulo do nosso direito administrativo se afastou de sua matriz francesa, aproximando-se do direito norte-americano, que desconhece o conceito de serviço público, operando a partir da ideia de regulação da ordem econômica.
A própria concepção francesa sofreu várias mutações, amoldando-se às normas da comunidade europeia e acomodando-se também a normais mais flexíveis de mercado e concorrência. Ocorre que nem mesmo na França, berço da concepção de serviço público, optou-se por tamanha rigidez normativa ao conceito como no Brasil, que fixou balizas na própria Constituição, atribuindo, pela particularidade formal, um caráter brasileiro ao conceito de serviço público, como brilhantemente destacado por Almiro do Couto e Silva.
De fato, a Constituição não traz um conceito de serviço público, embora sempre o apresente a partir da dicotomia entre serviço público (art. 175, CF/88) versus atividade econômica (art. 170, parágrafo único e art. 173 da CF/88), conforme o pensamento de Eros Grau. Dos problemas para conceituação emerge a consequência prática: dizer que determinada atividade é serviço público significa estabelecer que só pode ser prestado diretamente pelo Estado ou pelo privado, mediante regime de concessão ou permissão, sempre precedido de licitação. Em síntese, é destacar a incidência de um regime de direito público, afastando, por consequência, a incidência do regime de direito privado.
É verdade também que a caracterização de uma atividade como serviço público pode variar ao longo do tempo. Na França, por exemplo, antes da Primeira Guerra Mundial, o Conselho de Estado entendia que as atividades teatrais não compunham o grande gênero de serviços públicos (aresto Astruc, 1916). O mesmo Conselho mudou de ideia depois da Segunda Guerra, incitando a população às artes dramática, ressaltando seu caráter de instrução pública (arestos Sté Les Amis de L’Opérette, de 19.3.1948; e Gueusi, de 27.7.1923).
No Brasil, essa discussão alcançou diversas categorias de setores distintos. Durante muito tempo, por exemplo, o STJ e diversos tribunais de justiças – entre eles TJRJ e TJRS -, posicionavam-se no sentido de que o serviço de táxi era transporte público, devendo ser precedido de licitação, não podendo ser exercido mediante simples autorização, ato administrativo de natureza precária. A questão só foi dirimida quando o STF julgou dispositivos da Lei de Mobilidade Urbana, assentado posicionamento de que se trata de um serviço de utilidade pública, mas não de um serviço público.
Ao julgar a constitucionalidade de exploração da atividade de loterias por estados, o STF reforçou a natureza de serviço público das loterias. A PGR pede que tal entendimento seja aplicado, por simetria, ao caso das apostas online, cuja consequência, caso a ação prospere, será a realização de licitação para exploração do serviço. De fato, o art. 29 da Lei nº 13.756/2018 prevê que o serviço era executado sob a forma de serviço público, no entanto prevê que é mediante autorização do Ministério da Fazenda, devendo ser explorada em regime concorrencial, sem limitações ao número de autorizações concedidas.
Defende a PGR na referida ação, que a discricionariedade para o ato de concessão e o excesso de poder regulatório conferido ao Poder Executivo acaba por violar o regime previsto constitucionalmente para exploração de serviço público. Nesta linha, o serviço só poderia ser explorado mediante concessão ou permissão, jamais por meio de autorização, e sempre precedido de licitação.
Ao julgar recentemente a ADI 5.549, o Supremo Tribunal Federal admitiu a outorga de autorização para prestação de serviço de transporte rodoviário de passageiros, dispensando a obrigatoriedade de licitação. É verdade que o próprio texto constitucional prevê essa possibilidade, (art. 21, XII, “e” da CF/88. O posicionamento demonstra, contudo, além disso, uma preocupação em flexibilização do rígido regime instituído na Constituição para prestação de serviços considerados públicos, especialmente diante do dinamismo das atividades, constantemente modificadas pelo advento de novas tecnologias. Basta pensarmos que a decisão sobre a Lei de Mobilidade Urbana, anteriormente citada, surge no contexto do ingresso dos aplicativos de transporte individual de passageiros no país.
Neste julgamento, o STF também assentou, no voto conduzido pelo relator Min. Luiz Fux, que a forma de prestação dos serviços públicos deve garantir a observância dos princípios constitucionais e voltar-se ao atingimento das finalidades precípuas de concretização daquele serviço. A licitação garante a observação do princípio da isonomia e da obtenção da proposta mais vantajosa, mas é dispensável em determinados casos, a depender da natureza do serviço em debate.
A Administração Pública cada vez mais procura meios alternativos para garantir a prestação e descentralização dos serviços públicos: contratos de gestão com organizações sociais, termos de parceria com organizações da sociedade civil, instrumentos de parceria público-privada e até mesmo consórcios públicos.
No caso das casas de apostas online, apesar de prever a prestação sob a forma de serviço público, o legislador também previu que o instrumento de outorga seria o da autorização. Não se trata de um descontrole ou desregulamentação. Órgãos do Poder Executivo devem regulamentar e realizar a fiscalização do exercício da atividade. No entanto, seria um equívoco entender como inconstitucional um dispositivo que prevê um instrumento de outorga mais flexível para prestação daquele determinado serviço.
Mais: a própria legislação prevê que o serviço deve ser prestado em um ambiente de concorrência. Justamente por isso, deve ser rechaçada qualquer tentativa de oposição de barreiras à entrada no setor econômico, uma vez que por definição limitam a competição, estando a Administração Pública agindo em contrariedade ao princípio da eficiência. O próprio legislador previu o serviço de apostas online como serviço público, o que não impede de haver uma alteração legislativa, como ocorreu no próprio caso da Lei de Mobilidade Urbana. O que há de se atentar é que não há inconstitucionalidade na norma por prever uma forma alternativa de prestação do serviço.
É importante abandonar essa visão ultrapassada de serviço público e a rigidez formal estabelecida para sua prestação, que muitas vezes desprestigia a concorrência e a eficiência em nome de formalismos e encaixes conceituais que já não se coadunam com a atividade administrativa do século XXI.
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