Antônio Gomes da Silva tinha uma aparência distinta. De boina, óculos, apoiado em uma bengala, o senhor de 55 anos se apresentou como capelão. Após cumprimentos de praxe, expôs a demanda que o levou ao escritório de advocacia de Roberto Zampieri, no bairro Bosque da Saúde, em Cuiabá. Disse que estava ali em nome de um sobrinho que morava no Texas, Estados Unidos. O parente era casado com uma americana, cujo pai tinha falecido e deixado um rancho de US$ 50 milhões para a família.
A intenção da americana, continuou o capelão, era adquirir um bom pedaço de chão na Baixada Cuiabana, a cerca de 60 quilômetros de Cuiabá, “em razão do clima semelhante ao do Texas”, e ali investir na produção de vacas leiteiras.
No dia 5 de dezembro do ano passado, o capelão que usava uma bengala porque aparentava dificuldades para andar, revelou sua real ocupação: assassino de aluguel.
Empunhando uma pistola 9 milímetros, arma de grande letalidade e precisão, ele disparou 12 vezes à queima-roupa contra Zampieri, que entrava em sua Fiat Toro branca, estacionada do outro lado da rua onde ficava seu escritório. Eram 19h53. Chegava ao fim a trajetória do ‘lobista dos tribunais’, como Zampieri ficou conhecido dado seu trânsito nas Cortes forenses, aqui e ali tratado com deferência e reverências por magistrados.
A morte de Zampieri não deixou apenas um rastro de sangue naquela rua de Cuiabá. Em seu carro a Polícia encontrou R$ 11 mil em dinheiro. Em seu celular, os investigadores encontraram pistas que podem indicar uma farra de venda de sentenças em tribunais pelo país afora, especialmente nos TJs de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul - oito magistrados, dos quais sete desembargadores, estão alijados de suas funções por suspeita de malfeitos sob o manto da toga. Todos negam a prática de ilícitos.
A defesa do fazendeiro acusado de ser mandante do assassinato sustenta que seu cliente é inocente; o coronel reformado que também é acusado de participar do crime alegou, em depoimento à Polícia Civil, que o assassino do advogado foi apresentado como pedreiro; o instrutor de tiro que também está preso diz que apenas levou uma arma para o homem que confessou a execução. (veja abaixo)
O desembargador Sebastião de Moraes nega ilícitos e envolvimento com Zampieri.
Mensagens via WhatsApp no aparelho do lobista chegam ao topo da hierarquia do Judiciário e inquietam gabinetes de ministros do Superior Tribunal de Justiça - pelo menos quatro servidores estão sob investigação, dois já afastados. O STJ afirma que não há indícios de ligação de ministros com o esquema supostamente protagonizado por Zampieri.
Antônio Gomes da Silva, o pistoleiro que se dizia religioso, está preso. O crime ele confessou, testemunhas o reconheceram, imagens de circuito de segurança o flagraram. Além de Antônio, que a Polícia alcunhou ‘padre’, outros dois personagens da trama também foram capturados: um instrutor de tiro e um coronel reformado. Os três são réus na ação que trata do homicídio de Zampeiri.
Em seu interrogatório, Antônio - pedreiro é a profissão que declarou às autoridades -, disse como espreitou o ‘lobista dos tribunais’. Passou um mês ‘cercando’ o advogado, Conseguiu uma audiência, em novembro do ano passado. Foram quatro encontros com sua vítima, até o dia da emboscada.
O pistoleiro afirmou à Polícia que “não se arrepende do crime”. Chamou de “merda” o assassinato, segundo ele, “mal feito” por causa da “pressa” dos mandantes.
Detalhou aos investigadores que pretendia eliminar Zampieri “longe do escritório, para não ter dificuldade para fugir” - mas não conseguiu ficar sozinho com o advogado em algum local mais afastado, daí essa parte do plano capitulou.
Cogitou “fazer” (eliminar) Zampieri e seu sócio, os dois de uma vez, mas não foi adiante porque “havia mais gente” no escritório na ocasião. No dia do assassinato aguardou 40 minutos do lado de fora, sentado em um toco de árvore, com a pistola em uma caixa de papelão, até a hora de matar.
Zampieri foi fuzilado sumariamente - atingido nas costas (cinco projéteis), peito, clavícula, joelho direito, abdome, joelho esquerdo, costas, braço direito, punho esquerdo, mão esquerda e coxa esquerda. Oito balas atravessaram o corpo do advogado.
Depois que descarregou sua 9 milímetros, o matador correu. Enfiou a arma no bolso e voltou para o hotel em que estava hospedado. No caminho, fingia falar ao celular. Destruiu a arma no hotel com uma marreta, afirma, e dela transportou os pedaços em uma viagem para Belo Horizonte, no dia seguinte.
Nesse trajeto, segundo disse, descartou o que restou da 9 milímetros em uma lixeira em uma parada de ônibus em Rondonópolis.
Os detalhes do crime, narrados pelo pistoleiro, constam do inquérito que culminou no indiciamento do mandante. Essa parte da investigação, que visa quem encomendou o homicídio, foi derivada do inquérito que indiciou Antônio e outros pela execução e financiamento da empreitada.
Os demais participantes da trama
O assassinato do ‘lobista dos tribunais’ também é atribuído pela Polícia Civil a outros três personagens: o fazendeiro Aníbal Manoel Laurindo, apontado como mandante; o instrutor de tiro Hedilerson Fialho Martins Barbosa; e o coronel reformado Etevaldo Caçadini de Vargas, que foi subsecretário de Integração de Segurança Pública de Minas em 2019.
Inicialmente, a Polícia seguiu a pista de uma desavença entre Zampieri e uma mulher, hipótese que logo foi desfeita como motivação do crime.
Quando foi à delegacia para depor sobre o assassinato de Zampieri, o sócio do ‘lobista dos tribunais’ falou do pistoleiro que se identificou como ‘capelão’. O homem, disse, “parecia mancar”. O sócio de Zampieri narrou que achou meio estranha aquela história acerca do sobrinho casado com a americana. Ficou até ressabiado, mas Zampieri viu ali uma oportunidade de bom negócio.
O pistoleiro foi preso ainda em dezembro. Interrogado pela Polícia, contou que foi procurado pelo instrutor de tiro Hedilerson Fialho Martins Barbosa que o consultou sobre eventual interesse em dar um fim em Zampieri. Em troca, o assassino receberia R$ 40 mil. De entrada, recebeu R$ 20 mil. O restante seria repassado após a execução da ‘encomenda’ - essa parte do dinheiro, no entanto, ele diz nunca ter visto.
Após concordar com a missão, Antônio recebeu em seu celular imagens e um áudio em que um homem, sotaque italiano, dizia, “Aquele cara pegou a minha terra aqui. Ele já pegou a minha e agora está pegando a do meu irmão.”
A Polícia juntou essa informação com dados extraídos do celular do coronel Caçadini, identificado pelo pistoleiro como a pessoa que lhe pagou o sinal de R$ 20 mil. O militar, informou o pistoleiro, fez a intermediação entre ele, o instrutor de tiro e o fazendeiro, que seria o mandante.
Rastreando mensagens e ligações armazenadas no celular do coronel, os investigadores verificaram que, logo após o assassinato, ele ligou para o instrutor de tiro para saber se a execução havia ocorrido. Caçadini ligou também para Aníbal “provavelmente para transmitir as informações fornecidas por Barbosa”, deduz o delegado Nilson André Farias de Souza, da Polícia Civil de Mato Grosso, encarregado do inquérito.
Disputa de terras
Os investigadores chegaram, então, a um processo de disputa de terras, peça central da trama que culminou com o corpo de Zampieri crivado de balas. O relator desse processo era o desembargador Sebastião de Moraes Filho, afastado desde junho do Tribunal de Justiça de Mato Grosso por ordem da Corregedoria Nacional de Justiça por suposta “amizade íntima” com Zampieri.
Esse capítulo é crucial na investigação. Como mostrou o Estadão, o processo guarda idas e vindas. Elas são muitas. De um lado da ação das terras estavam Aníbal e seu irmão José Vanderlei Laurindo. Do outro, Zampieri, que representava Jessé Benedito.
A área em litígio chama-se Fazenda Lagoa Azul. Cinco mil hectares espalhados por Ribeirão Cascalheiras, a 960 quilômetros de Cuiabá.
No curso desta ação, deu-se início às tratativas do assassinato. Segundo Antônio, o crime chegou a ser aventado já em setembro, mas os mentores “desistiram naquele momento e pediram para esperar mais um pouco até o fim do ano”.
Os investigadores localizaram um PIX de R$ 2 mil da mulher de Aníbal para o coronel Caçadini. Eles suspeitam que esse valor custeou despesas da viagem de Antônio Gomes da Silva da capital mineira a Cuiabá.
Algumas movimentações no processo das terras aceleraram o plano para tirar a vida do ‘lobista dos tribunais’. Zampieri havia pedido à Justiça a produção de provas e então “provavelmente os investigados decidiram que não dava mais para atrasar a execução”. Uma decisão do desembargador Sebastião de Moraes Filho acabou sendo o estopim para que o planejamento do assassinato ganhasse força.
Moraes Filho se manifestou ante acusações de Aníbal sobre sua proximidade com Zampieri. O desembargador escreveu que não era amigo do advogado e que o fazendeiro havia atingido seu “âmago”. Alegou que os ataques “gratuitos” da parte lhe tiraram a isenção para julgar o caso.
No entanto, apesar de se declarar suspeito para decidir no processo, o magistrado revogou uma decisão anterior que deixava a ação em suspenso até a análise final do Tribunal de Justiça - o despacho contrariou os interesses de Aníbal.
Com base nessa decisão do amigo desembargador, Zampieri pediu, há exatamente um ano, a expedição de um mandado de reintegração de posse imediata das terras da família de Aníbal.
Para a Polícia, o despacho de Moraes Filho levou ao complô contra o ‘lobista dos tribunais’.
Para os investigadores, Anibal decidiu matar o advogado porque acreditava “de forma leviana que estava perdendo a lide em relação às suas terras em virtude do desembargador Sebastião ter sido o relator no processo principal e decidiu de forma contrária aos interesses de seu irmão Vanderlei”.
A Polícia avalia que enquanto o processo da Fazenda Lagoa Azul travou, o pistoleiro preparava sua missão. Ele comprou uma passagem para Cuiabá, onde permaneceu por um mês. Segundo Antônio, dia após dia “aumentava a pressão dos mandantes”.
Os financiadores do crime insistiram que a cilada ocorresse antes da audiência de reintegração de posse da Lagoa Azul, afirmou Antônio à Polícia.
O pistoleiro alegou aos investigadores que não tinha ouvido o nome do mandante. A Polícia o confrontou: “O doutor Roberto (Zampieri) trabalhava para várias pessoas, e ele tinha uma disputa de terras com uma certa pessoa, essa pessoa tinha uma ação judicial. A vítima já havia advogado para ela, mas depois passou a defender os interesses da parte contrária.”
O pistoleiro respondeu. “O medo deles de não executar a tempo era de evitar que ele fizesse isso ai.”
Segundo Antônio, os financiadores não falavam em uma data específica para o crime, “mas tinha que ser logo”. “Por isso que a merda foi mal feita. Eles ficavam pressionando e dizendo pô, vocês estão aí há quatro semanas sem fazer o negócio”, narrou.
“Tinham medo de perder a terra na audiência (de reintegração de posse). A pressa era por causa disso.”
A confissão do matador não é o único trunfo da Polícia. Os investigadores dão ênfase às informações encontradas no celular do coronel Caçadini: foto da certidão de óbito de Zampieri, foto de Barbosa e uma imagem da caixa que ele usou para esconder a pistola 9 milímetros. Também foram anexadas aos autos imagens de Antônio no hotel onde estava hospedado e trechos do inquérito policial.
Os policiais destacam o que consideram “cheque mate” para incriminar Aníbal como mandante. Trata-se da foto de uma ação envolvendo o fazendeiro e seu irmão, “comprovando de forma cabal a autoria e motivação do delito”.
Para a Polícia, a foto “faz a conexão completa entre Aníbal e Caçadini”. Em julho passado, Aníbal foi indiciado por homicídio qualificado praticado mediante paga e à traição de emboscada.
COM A PALAVRA, A DEFESA DE ANIBAL MANOEL LAURINDO
À reportagem do Estadão, o criminalista Carlos José de Campos afirmou:
“A Defesa de Aníbal Manoel Laurindo informa que o processo em questão tramita sob segredo de justiça.
Em cumprimento à determinação judicial, não serão divulgadas informações neste momento.
Reiteramos nosso compromisso com a transparência e o respeito à Justiça.
Temos convicção que a inocência de Aníbal será provada, mas solicitamos compreensão, pois a natureza sigilosa do caso impede a divulgação de detalhes ao público.”
Intimado pela Polícia no inquérito, Aníbal ficou em silêncio durante audiência com os investigadores.
COM A PALAVRA, O CORONEL REFORMADO ETEVALDO CAÇADINI DE VARGAS
Interrogado pela Polícia de Cuiabá, o coronel Caçadini alegou que, em uma reunião da qual participou em Cuiabá em 2011, Zampieri foi como um grande conhecedor de terras. Alegou que nunca mais teve contato. Afirmou que Barbosa teria " problemas psicológicos, e com isso disse coisas que não devia”. Apontou que conheceu Antonio via Barbosa, e que ele lhe foi apresentado como um pedreiro que poderia fazer uma obra em seu escritório.
COM A PALAVRA, O INSTRUTOR DE TIRO HEDILERSON FIALHO MARTINS BARBOSA
Em depoimento à Polícia Civil de Cuiabá, Hedilerson Fialho Martins Barbosa disse que Antônio entrou em contato com ele, falando que iria executar uma pessoa em Cuiabá e pediu para ele levar uma arma de fogo pra ele na cidade. Alegou que o mandante entrou em contato com Antônio e que não sabe dizer quem é ele. Sustentou que não recebeu nenhum valor por levar a arma para Cuiabá.
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