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Opinião | Breves notas sobre a Carta Política do Império de 1824

Trata-se de data de grande relevo na história política do Brasil, pois representa um marco significativo na evolução do constitucionalismo brasileiro

convidado
Por Celso de Mello
Atualização:

HÁ 201 anos, no dia 25 de março de 1824, uma quinta-feira, Dom Pedro I outorgava ao Brasil a sua primeira Carta Constitucional: a Carta Política do Império do Brasil!

Dom Pedro I em retrato do pintor Simplício Rodrigues de Sá  

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Trata-se de data de grande relevo na história política do Brasil, pois representa um marco significativo na evolução do constitucionalismo brasileiro.

Essa primeira Carta Política foi, entre os sucessivos documentos constitucionais que regeram nossa vida político-institucional, a que por mais longo tempo vigorou entre nós: 65 anos, 7 meses e 21 dias, eis que cessou de viger com o advento do Decreto n. 1, de 15 de novembro de 1889, cujo texto - editado pelo Governo Provisório da República, chefiado pelo Marechal Deodoro da Fonseca - assim dispunha em sua versão original: “Proclama provisoriamente e decreta como fórma de governo da Nação Brazileira a Republica Federativa, e estabelece as normas pelas quaes se devem reger os Estados Federaes.”

Esse ato inaugural do constitucionalismo republicano, com 11 artigos, foi assinado pelos membros que, naquele momento, compunham o Governo Provisório da República, integrado pelo Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), que o chefiou, e por Aristides Silveira Lobo (1838-1896, Ministro do Interior), Ruy Barbosa (1849-1923, Ministro da Fazenda), Quintino Bocayuva (1836-1912, Ministro das Relações Exteriores), Benjamim Constant (1836-1891, Ministro da Guerra) e o Contra-Almirante Eduardo WandenkoIk (1838-1902, Ministro da Marinha).

Posteriormente, Deodoro nomeou Campos Salles e Demétrio Ribeiro, que NÃO subscreveram o Decreto n. 1, de 15/11/1889, Ministros da Justiça e da Agricultira, respectivamente .

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Como a proclamação da República resultou de um golpe de Estado, liderado por militares, notadamente do Exército, o Marechal Deodoro da Fonseca conferiu a todos os Ministros civis do seu Governo Provisório a patente honorária de General-de-Brigada, enfatizando, com essa medida, a natureza castrense do movimento que derrubou a Monarquia e que pôs fim à Carta Política do Império do Brasil e a todas as instituições monárquicas.

CONSAGRADO o novo regime político a partir do movimento que resultou na independência de nosso País, livre de sua vinculação ao Reino de Portugal, cabe reconhecer que foram muitas as inovações introduzidas no plano jurídico-institucional plasmadas no texto de nossa primeira Carta Constitucional, cujas principais características foram por mim sintetizadas em livro que escrevi (“Constituição Federal Anotada”, 2a. edição, 1986, Saraiva) e no qual, além de haver analisado muitos outros temas de índole constitucional, destaquei os aspectos tipológicos das diversas Constituições que o Brasil teve até hoje!

EIS AS NOTAS mais expressivas (e relevantes) que constam, como referências politica e juridicamente inovadoras, do “corpus” constitucional consubstanciado no texto normativo da Carta Política do Império do Brasil de 1824: a) ela instituiu a forma unitária de Estado, com forte centralização político-administrativa; b) adotou a forma monárquica de governo; c) dividiu o território do Império do Brasil em províncias, cada qual administrada por um presidente, nomeado pelo Imperador e livremente por êle exonerável; d) definiu o catolicismo como religião oficial do Império, embora assegurasse às demais religiões o culto doméstico ou particular, desde que sem forma exterior de templo; e) reconheceu a divisão funcional do poder como o princípio conservador dos direitos e liberdades do cidadão; f) incorporou ao texto a fórmula elaborada pelo jurista e pensador político franco-suíço Benjamin Constant (sem qualquer identificação com o Tenente-Coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães ) consistente no conhecimento de quatro poderes políticos: legislativo, moderador, executivo e judicial; g) o Poder Legislativo foi delegado à Assembleia Geral, órgão bicameral, composto pela Câmara dos Deputados (eletiva e temporária) e pela Câmara dos Senadores ou Senado (organizada por eleição provincial, designados os seus membros pelo Imperador, a partir de uma lista tríplice, e investidura vitalícia); h) o sistema eleitoral vigente tinha por fundamento o sufrágio censitário, apenas titularizável por aqueles que, dentre outras exigências, satisfizessem os requisitos de ordem econômico- financeira. Desse modo, apenas podiam votar (cidadania ativa) os que tivessem fortuna própria ou possuíssem renda líquida, mínima e anual de cem mil-réis. De outro lado, a elegibilidade (cidadania passiva) também era condicionada a requisitos econômico- financeiros: eleitor de província (renda mínima, liquida e anual de duzentos mil-réis), deputados (renda de quatrocentos mil-réis), senador (renda de oitocentos mil réis); i) o Poder Moderador (“Pouvoir Royal” ou Poder Neutro ) e o Poder Executivo foram deferidos ao Imperador. O primeiro (Poder Moderador), reconhecido como “a chave de toda organização política” do Império, foi delegado privativamente ao monarca, para que, mediante o seu exercício, desempenhado com o auxílio do Conselho de Estado, velasse sobre a preservação da independência e a manutenção do equilíbrio e harmonia dos três outros poderes políticos. O exercício do Poder Moderador legitimava a intervenção do Imperador na esfera do Legislativo (nomeando senadores, dissolvendo a Câmara dos Deputados, convocando extraordinariamente a Assembleia Geral, sancionando e vetando as proposições legislativas), do Executivo (nomeando e exonerando os Ministros de Estado) e do Judiciário (suspendendo os magistrados, exercendo a clemência soberana em relação aos réus condenados por sentença). O Imperador também chefiava o Poder Executivo, que exercia por intermédio de seus Ministros de Estado. Estes eram responsáveis pelo desempenho de suas atribuições político-funcionais, podendo sofrer até mesmo a pena de morte na hipótese de crime de responsabilidade! A pessoa do monarca, contudo, era inviolável e sagrada, não estando ele sujeito a responsabilidade alguma; j) o Poder Judiciário era composto de juízes e jurados. O Tribunal do Júri tinha competência em matéria penal e também civil, nos casos determinados pelos códigos. Os magistrados eram vitalícios. Não ostentavam, porém, a garantia da inamovibilidade. Os Tribunais da Relação, existentes em cada Província, eram órgãos de segunda instância. O órgão de cúpula do Poder Judiciário, no Império, foi o Supremo Tribunal de Justiça, cujos membros (Conselheiros) eram necessariamente magistrados togados, tirados das Relações provinciais (Desembargadores) por suas respectivas antiguidades; k) a Carta Imperial continha uma ampla Declaração de Direitos, reflexo da influência provocada pelas Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789); l) as proposições legislativas estavam submetidas ao poder de sanção ou de veto do Imperador, que dispunha do prazo de um mês para exercê-lo. O veto do Imperador não era absoluto. Tinha efeito meramente suspensivo. Passadas duas legislaturas (quatro anos cada uma), e se o projeto fosse reapresentado e novamente aprovado pela Assembleia Geral, reputar-se-ia sancionado. Registre-se que, sob a Carta monárquica, e ao contrário das Constituições republicanas, estava previsto o veto tácito, caracterizado pelo decurso, “in albis” (“em branco”), do prazo de um mês .

ESSAS, em resumo, as principais características da nossa primeira Carta Constitucional: a Carta Política do Império do Brasil, outorgada pelo Imperador Dom Pedro I no dia 25 de março de 1824, uma quinta-feira!

CABE, aqui, uma curiosa observação de caráter histórico: Dom João VI, pressionado por multidão de populares, no Rio de Janeiro, foi constrangido a editar, em 21 de abril de 1821, Decreto Real pelo qual DETERMINAVA QUE SE OBSERVASSE, temporariamente, no Brasil, A CONSTITUIÇÃO ESPANHOLA, até que sobreviesse a promulgação da Constituição Portuguesa pelas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, reunidas em Lisboa!

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A Constituição Espanhola a que se referiu Dom João VI, vigente na Espanha em 1821, era a Constituição de Cádiz, de 1812, conhecida como “La Pepa” (feminino de “Pepe”), por haver sido promulgada no dia 19 de março, “Dia de São José” (“Pepe”)!

A Constituição de Cádiz, que vigorou em períodos descontínuos (1812/1814 - 1820/1823 e 1836/1837), foi a primeira Constituição Política do Reino da Espanha!

Instaurou, naquele País, um regime de monarquia constitucional, com limitação dos poderes reais (afastando, portanto, a ideia e a prática do absolutismo monárquico), e consagrou uma declaração liberal de direitos e liberdades fundamentais!

EIS O TEOR da determinação joanina: “(…) Sou servido ordenar, que de hoje em diante se fique estricta e litteralmente OBSERVANDO neste Reino do Brazil A MENCIONADA CONSTITUIÇÃO HESPANHOLA, até o momento em que se ache inteira e definitivamente estabelecida a Constituição, deliberada, e decidida pelas Côrtes de Lisboa.”

Esse Decreto de Dom João VI, no entanto, teve efêmera duração (como a “rosa de Malherbe”, que viveu apenas durante o breve espaço de uma manhã), pois, no dia seguinte, 22 de abril de 1821, veio êle a ser revogado por outro Decreto Real, CUJO TEOR, sintetizado em sua ementa - “Annulla o Decreto datado de hontem que mandou adoptar no Reino do Brazil a Constituição Hespanhola” -, CONTINHA a seguinte determinação:

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“Subindo hontem á Minha Real presença uma Representação, dizendo-se ser do Povo, por meio de uma Deputação formada dos Eleitores das Parochias, a qual Me assegurava, que o Povo exigia para Minha felicidade, e delle, que Eu Determinasse, que de hontem em diante este Meu Reino do Brazil fosse regido pela Constituição Hespanhola, Houve então por bem decretar, que essa. Constituição regesse até a chegada da Constituição, que sàbia e socegadamente estão fazendo as Côrtes convocadas na Minha muito nobre e leal Cidade de Lisboa: Observando-se porém hoje, que esta Representação era mandada fazer por homens mal intencionados, e que queriam a anarchia, e vendo que o Meu Povo se conserva, como Eu lhe agradeço, fiel ao Juramento que Eu com elIe de commum accordo prestamos na Praça do Rocio no dia 26 de Fevereiro do presente anno, HEI POR BEM DETERMINAR, decretar e declarar POR NULLO todo o Acto feito hontem; e que o Governo Provisorio que fica. até a chegada da Constituição Portugueza, seja da forma que determina o outro Decreto, e Instrucções que Mando publicar com a mesma data deste, e que Meu filho o Princípe Real ha de cumprir e sustentar até chegar a mencionada Constituição Portugueza.

Palacio da Boa Vista aos 22 de Abril de 1821.”

VÊ-SE, portanto, que o Reino do Brasil - embora ainda integrasse, desde 16/12/1815, o Reino Unido de Portugal e Algarves - esteve, em 1821, mesmo que no curto período de apenas 24 horas, sob a égide da Constituição do Reino da Espanha!!!

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Celso de Mello
Ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal
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