Na manhã de ontem, quarta, 11, fui recebido pelo advogado José Carlos Dias em sua residência, um aconchegante apartamento de 420 metros, catorze andares acima da rua Antônio Carlos, na Bela Vista. Quando cheguei, às 8h40, ele ocupava uma poltrona na ampla sala de piso coberto de tapetes de franjas. Em seu laptop passeava pelas páginas de periódicos que segue desde sempre. “Abandonei o hábito da leitura de jornal impresso”, conta.
Aos 85 anos, mais de 60 dedicados à advocacia criminal, José Carlos praticamente não mudou sua fisionomia da época em que nos conhecemos, ali pelos anos 1976, talvez um pouco antes.
O rosto ornado por um cavanhaque espesso. Os cabelos tingidos de branco pelo tempo. São mudanças que encontrei na aparência do advogado das grandes causas. De resto, é o mesmo, a voz pausada, mas firme. A mesma altivez com que desfilava pelos tribunais e endereços do regime de exceção, época em se notabilizou como causídico dos direitos humanos e de prisioneiros políticos.
Seus 85 anos de vida, ao menos parte dessa jornada, preenchem as 238 páginas do livro Democracia e liberdade, a trajetória de José Carlos Dias na defesa dos direitos humanos, que será lançado nesta quinta, 12.
Ofereceu-me um café, em uma outra sala, com janela ampla, vista para os lados da Paulista logo acima. Nasceu e foi criado aqui. O batismo se deu na Paróquia do Divino Espírito Santo, em 1939.
Sentou-se na ponta da mesa retangular. Otávio, seu filho, 57, e eu nos acomodamos à sua esquerda. À nossa frente, Regina, 77 que não aparenta, amável anfitriã, esposa de José Carlos.
Uma garrafa de café, outra de leite. Nos servimos. Na bancada, melão fatiado e bem doce, macio, queijo branco. Pães no cesto. Sem requintes.
Durante uma hora e meia consultei um arquivo notável, a memória de José Carlos Dias. Busquei anotações remotas, desde os idos de 1960, quando ingressou nas Arcadas da Faculdade de Direito da USP, após cursar o Clássico no Colégio São Luís.
De formação religiosa, estudioso, alcançou um notável quarto lugar entre 400 aprovados da São Francisco naquele ano.
Ainda no início do curso ensaiou seus primeiros passos na carreira, dedicando-se aos menos favorecidos, uma tradição do Centro Acadêmico XI de Agosto.
Escolheu a área criminal da advocacia, relata, embora tivesse ouvido de seu pai algo que soou como uma anedota, mas, em verdade, um conselho. “Filho, o crime não compensa.”
Theodomiro Dias, homem das letras jurídicas também, chegou a desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, pela via do quinto constitucional da Advocacia. O jovem não seguiu o conselho do pai e tornou-se um criminalista proeminente.
Pede vênia para falar de sua admiração pelo São Paulo Futebol Clube que, nos anos 1940, encantou o menino com aquele time de alta linhagem. Um elenco que ele recita ainda hoje com alegria e precisão. ‘Rui, Bauer e Noronha... Leônidas, Teixeirinha e Remo...’, não exatamente nessa ordem.
Algumas passagens das quais me recordo nitidamente José Carlos já não lembra mais. Como aquele fim de tarde, em 1980, quando foi barrado à porta da antiga construção de tijolos avermelhados no Largo General Osório, sede do Dops, a Polícia Política da época. Lula estava preso ali, sob acusação de violação da Lei de Segurança Nacional por mais uma greve nas montadoras do ABC paulista promovida pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, do qual o petista era o presidente.
José Carlos não aceita intimidações, jamais se curvou. Naquele dia eu estava na calçada em frente à fortaleza da repressão. Segui seus movimentos. Ele e Teotônio Vilela foram visitar Lula, então sob custódia da Divisão de Ordem Social. Os tiras não o deixaram entrar.
José Carlos nunca se dava por vencido. Um pouco adiante, na mesma calçada, à esquerda da entrada principal, ficava o portão da garagem, basculante, uma armação de ferro entrelaçado. Um camburão está saindo. José Carlos vê sua chance. O portão desliza em movimento vertical, para baixo. Vai fechar. Num gesto arriscado e surpreendente, o advogado lança-se ao chão e rola para o interior do prédio. Entrou na marra.
O escritório, um reduto pujante do Direito, ele mantém com seis profissionais. A equipe é liderada pelo filho Téo Dias, 59. Fica em uma torre monumental, o Terraço Itália, avenida São Luís. José Carlos está ali desde que o colosso da arquitetura foi erguido e inaugurado, em 1965, um ano depois que se formou na Sanfran. “Fui um dos primeiros”, diz o decano, orgulhoso do feito que vai completar 60 anos.
Falamos um pouco de política. “Nunca me interessei.” Uma vez foi sondado para se candidatar pelo PCB. Não o seduziu nem a projeção de ser contemplado com grande votação que o levaria ao Congresso. “Nada tenho contra comunista, mas não sou comunista.”
A conversa flui, tranquila. Falamos de sua gestão como secretário de Estado da Justiça do governo André Franco Montoro, eleito em 1982 e empossado no ano seguinte. “Tempos difíceis aqueles.” Na ocasião, um juiz fez barulho ao denunciar a existência de uma facção que se teria instalado nos presídios paulistas, alcunhada Serpentes Negras.
A pressão do magistrado não o intimidou. José Carlos manteve de pé seu projeto de democratização do cárcere, dando voz às lideranças dos presos.
Ouço o advogado com a deferência devida, enquanto folheio páginas do livro de suas memórias, uma obra dos jornalistas Ricardo Carvalho e Otávio Dias. São 16 capítulos - a carta a José Saramago, a Carta aos Brasileiros, que Gofredo leu nas Arcadas em 1977, a passagem pelo Ministério da Justiça (FHC), o álbum de fotos (26 imagens) e por aí vai.
A advocacia, hoje, como o sr vê?, pergunto. “Melhorou muito”, avalia. Em que aspecto? Quando começou na carreira, ele diz, as atividades do escritório eram limitadas, por assim dizer. Agora, as causas se expandiram e contemplam direito penal empresarial, novas legislações - lei da lavagem de dinheiro, lei do crime organizado, delações premiadas. “Os escritórios criaram áreas específicas para dar conta dessa nova realidade.”
Ah, sim, conversamos sobre a Comissão Arns (Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns), que devolveu o brilho nos olhos do buliçoso advogado. Criada em 2019, em meio aos solavancos do governo Bolsonaro, o grupo tem a missão de acolher e expor graves episódios de atentados à dignidade humana cometidos por agentes do Estado.
José Carlos estima muito a Comissão que leva o nome de seu amigo, o corajoso cardeal que partiu em 2016, aos 95. Outros nomes importantes da Advocacia lhe fazem companhia, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira e Belisário dos Santos Júnior, inclusive.
A presidente de honra é Margarida Genevois, socióloga, ativista, amiga e companheira de luta nos anos de exceção. Ela escreveu na contracapa. “José Carlos Dias é um leão. Um leão manso, mas, quando se zanga, sai da frente.”
São 10h20. Eu me despeço. Ele está de saída para uma entrevista na Lapa. Ao volante, Otávio pega a rua Antônio Carlos, atravessa a Augusta e conduz o grande advogado.
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