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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Cartas de Paris, notícias do Brasil

Aos 78 anos, Eduardo Augusto Muylaert Antunes, advogado criminalista, reúne em livro que será lançado na segunda, 27, correspondências que trocou com a família durante o período em que estudou na capital francesa, de 1969 a 1972; dos pais, Dora e Fernando, e do avô Durval, o então jovem bacharel recebia informações do reino do delegado Fleury, um Brasil subjugado pelo AI-5 da censura e da baioneta

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Foto do author Fausto Macedo
Atualização:

Em meio à mudança de endereço onde residiu por 30 anos, em São Paulo, o advogado Eduardo Muylaert reencontrou-se com passagem marcante de sua vida, uma experiência que atravessou há mais de meio século. O achado de Eduardo foi resgatado de uma caixa-arquivo esquecida no fundo do armário do quarto, instigou sua memória, o fez passear no tempo e inspirou Cartas de Paris, notícias do Brasil - que será lançado no próximo dia 27, segunda-feira, na Livraria da Travessa, Shopping Iguatemi, às 19 horas.

Capa do livro 'Cartas de Paris, notícias do Brasil', de Eduardo Muylaert Foto: Autêntica Editora/Reprodução

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São recortes de uma bonita história pessoal de Eduardo, em suas palavras um ‘tesouro’. O livro traz um relato singelo do advogado, robustecido com anotações manuscritas, as correspondências que o então jovem bacharel trocou com os pais, Dora e Fernando, e o avô Durval, ao anoitecer dos anos 1960, início dos 70.

Em 1969, Eduardo, com 24 anos, viajou a Paris com uma bolsa de pós-graduação do governo francês para estudar Direito Constitucional em Aix-en-Provence, no sul do país europeu. Antes da abertura do semestre letivo, ele devia passar por Paris para aprimorar o idioma na Aliança Francesa.

Desembarcou em Orly no dia 24 de agosto. Não estava só. Silvia o acompanhava. Eles se casaram dois meses antes. Ela havia conseguido uma bolsa para teatro. O casal partiu para uma temporada de aperfeiçoamento do idioma francês na Aliança.

Por aqui, viviam-se os anos de chumbo, sob tutela do arbítrio, da baioneta, da censura e do AI-5, o reino do delegado Fleury.

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Os pais, Dora Brandão Muylaert e Fernando Augusto Nora Antunes, e o avô Durval mantinham Eduardo informado, na medida do que lhes era possível, sobre a gente e os rumos de um País de medo e incertezas que ele deixara para trás.

Cartas com notícias do regime dos porões chegavam a ele na capital francesa, via Correios.

A Sérgio Paranhos Fleury, o delegado do Dops, símbolo da repressão, coube o mister de promover a grande caçada a Carlos Marighella, rotulado o ‘terrorista número 1′.

“Cinquenta anos depois, o acaso me levou de volta a esse tempo”, conta Eduardo, hoje aos 78, advogado criminal eminente, reconhecido além das fronteiras do mundo jurídico, formado pela Universidade de São Paulo, também escritor e fotógrafo.

Eduardo Muylaert; livro traz relato do advogado, com correspondências que o então jovem bacharel trocou com os pais e o avô Foto: Arquivo pessoal

Na França ele concluiu sua pós na Universidade Paris II.

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De volta ao Brasil, foi convidado pelo professor André Franco Montoro para dar aulas e ser seu assistente na pós da PUC, o que fez até 1982. Nesse ano, participa intensamente da campanha nas primeiras eleições diretas após 1964. Montoro, pelo MDB, chega ao Palácio dos Bandeirantes. Eduardo assume o papel de assessor especial do emedebista no governo paulista.

Em 1985, passa no concurso para procurador do Estado. Um ano depois, se lança a um desafio para poucos, o comando das Secretarias de Segurança Pública e da Justiça do Estado.

Com o fim do governo Montoro, é convidado a trabalhar com o ministro Paulo Brossard (governo José Sarney). Por um ano, preside o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça.

Eduardo Muylaert é autor de Direito no cotidiano: guia de sobrevivência na selva das leis. Publicou ensaios e contos em As letras da lei. 336 horas, Ninguém humano: bestiário do coletivo literário; Grandes crimes e Brasil: o futuro que queremos.

Foi indicado ao Prêmio Off Flip de Literatura em 2014 e ao Prêmio Sesc de Contos Machado de Assis em 2015.

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Quem conhece Eduardo sabe que a ética é um princípio que lhe é bastante caro.

Conheço Eduardo Augusto Muylaert Antunes há uns 40 anos, certamente, desde o governo Montoro (1983-1986). Nesse tempo, eu era repórter policial do Jornal da Tarde, que preenchia suas páginas com um jornalismo notável, irmão mais novo do Estadão secular.

Muitas vezes visitei Eduardo e o entrevistei na sede da Polícia, em Higienópolis. Verifiquei que, não por acaso, Montoro o escolheu para aquele encargo. Entre suas virtudes, Eduardo é um pregador do bom senso. Firme, se necessário, sem nunca perder o espírito conciliador que é marca sua. Um perfil surpreendente para uma pasta habitualmente nervosa e cheia de ciladas.

Agora, espreitando os 80, Eduardo é reconduzido àquela época remota pelo conteúdo da caixa que encontrou no fundo do armário.

De posse de vestígios daqueles anos remontou parte de sua história e, assim, deu vida a cada página de Cartas de Paris, notícias do Brasil (Autêntica Editora).

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Eduardo Muylaert; cartas com notícias do regime dos porões chegavam a ele na capital francesa, via Correios Foto: Arquivo pessoal

Ele conta como recuperou o acervo que o comove. “Preparando a mudança do apartamento em que morei por mais de 30 anos, encontrei, no fundo de um armário, uma caixa, uma simples caixa-arquivo de papelão, dessas que se usam para guardar velhos recibos e notas fiscais. Num gesto mecânico, fui conferir o conteúdo antes de descartar a caixa e eis que descubro um tesouro: lá estavam cartas, muitas cartas, a maioria dos tempos de Paris, e com caligrafias bastante familiares.”

Eduardo destaca notícia que leu às vésperas do embarque para a Europa - naquele agosto de 1969. “Uma pequena nota do Estadão dizia: ‘Marighella procura socorros’. Seus companheiros tinham feito contato com dois cardiologistas, já vigiados de perto.”

(A caçada de Fleury chegou ao fim na noite de 4 de novembro. Marighella foi fuzilado numa emboscada na alameda Casa Branca, nos Jardins, em São Paulo. A glória do delegado.)

Sérgio Paranhos Fleury, o delegado do Dops, símbolo da repressão Foto: Acervo Estadão

Cartas de Paris, notícias do Brasil nos transporta para esse período buliçoso. O Brasil assombrado, a França sob o choque de maio de 1968.

As páginas que resgatam essa fase de sua vida põem luz a cenas do nosso dia a dia e a outros fatos que ganharam lugar na História - a Guerra do Vietnã, a morte de De Gaulle, a doença do presidente Costa e Silva, o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, a morte de Carlos Marighella e o exílio de Chico, Caetano e Gil.

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Paris não era só festa, pôde verificar Eduardo. Os franceses viviam a contestação nas ruas.

Aqui, meu caro amigo - Chico cantou -, tão jogando futebol, tem muito samba, muito choro e rock’n’roll.

CARTAS DE PARIS - EXTRATOS, POR EDUARDO MUYLAERT

Ler o futuro nas cartas nem sempre dá certo. E o passado, então? Apagar, com um gesto brusco, as perdas do passado: perigosa ingenuidade, inútil empreitada. Enquanto os registros somem e a memória se dissipa, os sentimentos se refugiam em algum lugar. Podemos chamá-lo inconsciente, ou alma, mas isso não muda nada. Tudo continua lá. Uma simples fagulha, uma canção, um aroma, uma madeleine podem provocar inesperada erupção.

Em 1969, após a instituição do AI-5 no Brasil (dezembro de 68), mudei-me para Paris, onde concluí minha pós-graduação na Universidade Paris II.

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Paris não era só uma festa. A França ainda não se reencontrara depois de maio de 1968; havia desejo de ordem, também contestação e correria nas ruas.

Armados com pedras, estudantes enfrentam a polícia em Paris Foto: Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images

O Brasil enfrentava o pesadelo do AI-5, o governo militar tentava impor ordem à força, havia passeatas, prisões e perseguições. As notícias que chegavam do Brasil, mesmo veladas, eram assustadoras.

As cartas que eu escrevia de Paris todas as semanas, entre 1969 e 1972, contavam muitas histórias, registravam muita coisa. O Correio, mesmo censurado, era o único meio de comunicação; um telefonema internacional custava uma fortuna.

A maioria das cartas que eu recebia era de minha mãe e de meu avô. Alguns bilhetes de meu pai. Cartas esparsas de amigos. E muito poucas das que eu mesmo escrevi. Meus relatos, que hoje me seriam preciosos, desapareceram quase todos.

Por sorte, poupei parte das cartas que recebi. Essas sobreviventes acabam sendo um espelho invertido da minha vida naqueles anos. Como num quebra-cabeças, elas permitem reconstituir parte da história pelas respostas, uma espécie de testemunho de uma existência que, tanto tempo depois, poderia parecer fantasiosa.

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Eu viajava com uma bolsa de pós-graduação do governo francês para estudar Direito Constitucional em Aix-en-Provence, no sul da França. Antes que começasse o semestre letivo, devia passar por Paris para aprimorar o idioma na Aliança Francesa.

Desembarquei em Orly no dia 24 de agosto de 1969. Desenvolvia-se no Brasil uma caçada a Carlos Marighella, que havia criado em 1968 a Ação Libertadora Nacional (ALN), organização de luta armada contra o regime militar que praticava assaltos a bancos e atos de terrorismo. Uma pequena nota do Estadão dizia: ‘Marighella procura socorros’. Seus companheiros tinham feito contato com dois cardiologistas, já vigiados de perto. O cerco só terminou em 4 de novembro de 1969, quando Marighella foi morto numa emboscada em São Paulo. Preocupado com a partida, os documentos, as malas, as despedidas, nem consegui ler os jornais naquele dia.

Carlos Marighella Foto: Acervo Estadão

Ainda não tínhamos completado um mês em Paris, estudando francês, quando recebemos as notícias do acidente vascular cerebral (AVC) do presidente Costa e Silva e do sequestro do embaixador dos Estados Unidos.

A questão da luta armada era motivo de controvérsia entre os brasileiros de Paris. Muitos, e não só os ligados às organizações de esquerda, sustentavam que essa era a única via para derrotar o regime autoritário. Parte deles, entretanto, queria mesmo, e não escondia, a revolução socialista. Minha posição, clara na opção pelo estudo do direito constitucional e das liberdades públicas, era de que o Brasil teria de caminhar para a democracia pela via política. É certo que, naquele momento, e por muito tempo, Isso parecia uma utopia.

1969 foi um ano de muitas greves. Setembro foi marcado por uma forte paralisação dos transportes em Paris. Sem ônibus e metrô, eram tantos os automóveis circulando que a cidade parou. A imprensa cobria o movimento e todos, em toda parte, manifestavam suas opiniões.

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De alguma maneira, eram ainda reflexos de maio de 1968, como analisado pelo Le Monde: ‘O descontentamento latente, o medo do futuro, a insatisfação ou a nostalgia deixada pela crise de maio, o desencantamento político, constituem uma mistura que pode explodir a menor fagulha’.

NOTÍCIAS DO BRASIL, POR DORA, FERNANDO E DURVAL

1969, OUTUBRO

“Afinal foi mesmo resolvido, Garrastazu Médici para Presidente. Ele deu uma entrevista, ou melhor, fez um discurso na televisão que impressionou muito bem a todos. Parece que só tomará posse no dia 15 de novembro e nada foi resolvido sobre se o Congresso será reaberto só para legalizar a situação, mas parece que é o que pretendem.” (Carta da mãe, 8/10/1969)

“Sua penúltima carta veio aberta pelo correio daqui, acho que estranharam o peso. E temos nova Constituição proclamada hoje pelos três ministros!” (Carta da mãe, 17/10/1969)

(15 de novembro de 1969 foi um dia mundial de manifestações contra a Guerra do Vietnã. Na Alemanha, houve muitos confrontos com a polícia. Na França, também)

“Ontem, temperatura máxima de 20 e mínima de 12. Hoje foi feriado por conta da morte do Costa e Silva. Li sua carta e adorei as fotos. Impressionante o número de vítimas da gripe na Europa. Faço votos de que vocês não sejam atingidos por ela. Você tem ido ao jardim do Luxemburgo? Vejo que está bastante ocupado com os estudos, e tenho certeza de que terá sucesso no seu curso.” (Carta do avô, 18/12/1969)

JANEIRO DE 1970

(Enquanto isso, no Brasil, narra Eduardo, o Decreto-Lei n.º 1.077 instituiu a censura de livros e periódicos, sendo proibidas ‘publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes, quaisquer que sejam os meios de comunicação’.

O motivo alegado foi a publicação, por O Pasquim de 20 de novembro de 1969, da polêmica entrevista da atriz Leila Diniz, em que mais de 70 palavrões foram substituídos por asteriscos.

No mês seguinte, fevereiro de 1970, foi decidido ainda que os candidatos às futuras eleições seriam analisados pelo SNI, Serviço Nacional de Informações)

“Hoje, dia de São Paulo, estamos cheios de comemorações, Inauguração da nova praça Roosevelt e do estádio do São Paulo no Morumbi, com o jogo do São Paulo contra o Porto, na presença do presidente Médici. Vai haver um concerto com orquestra sinfônica na praça Roosevelt. Já houve também o baile do Municipal e a cidade está toda ornamentada para o Carnaval. Estamos com a peça O balcão sendo levada no Teatro Ruth Escobar. Parece que é a coisa mais espetacular que é possível de ser feita.” (Carta da mãe, 25/1/1970)

(Não cheguei a conhecer Sebastião Salgado em Paris, depõe Eduardo. Tínhamos, entretanto, um amigo de Recife, Emílio, que estudava Economia, era colega de Cristovam Buarque e falava muito nele. Chegamos a cruzar com o futuro senador algumas vezes em Paris.

Andando pela Cité a caminho do restaurante universitário, eu via às vezes um rapaz empurrando um carrinho duplo de bebê, com gêmeas. Era Aloysio Nunes, que teria um papel importante anos depois na política brasileira, inclusive como senador. Eu o conhecia de vista da faculdade de Direito, onde ele também tinha estudado. No pátio da faculdade, aliás, havia um cartaz em que ele era apontado como ‘procurado’. A foto, por equívoco, era de outro colega, que passou por maus bocados. O governo militar espalhava cartazes com fotografias de pessoas que supostamente integravam a luta armada para que fossem denunciadas e presas)

“O prato do dia político foi a carta do Abreu Sodré ao diretor do jornal Estado e ‘a nossa resposta ao governador’. Achei um fato tão capitoso que resolvi mandar os recortes para seu deleite. Quando acabei a leitura senti até pena do Sodré. ‘Estamos em três anos fazendo, em alguns setores, mais do que muitos fizeram em quatro séculos.’ Ele deve estar muito arrependido. Primeiro: um governador não escreve carta a um jornalista, ficará sempre em desvantagem. Segundo: forneceu tópicos para ser impiedosamente zurzido (nota: açoitar, espancar, maltratar, diz o Aurélio). A vaidade e o orgulho são os maiores inimigos do homem público.” (Carta do avô, 10/3/1970)

“A morte do embaixador alemão na Guatemala me causou grande tristeza. Acho que bem agiu o Brasil libertando os terroristas presos e evitando a possível morte do embaixador americano e do cônsul japonês. Há dois dias, em Porto Alegre, o cônsul americano enfrentou quatro assaltantes com metralhadoras e atropelou um deles. Foi atingido por uma bala na omoplata, mas já está se restabelecendo. (Carta do avô, 6/4/1970)

(É sempre perturbador receber cartas de pessoas queridas relatando dificuldades e não ter muito como ajudar, a não ser com palavras de compreensão e apoio, diz Eduardo. Uma questão importante, que não é nova, é saber se devemos deixar os episódios tristes ou dramáticos confinados no seio da família, ou se, como fazem parte de nossa história pessoal, os podemos narrar ou deles fazer uso como material literário.

Por fim, no dia 21 de junho de 1970, o Brasil sagrou-se campeão do mundo ao derrotar a Itália, por 4 a 1, no estádio Azteca, na Cidade do México. Os brasileiros de Paris, no início, não queriam torcer pela seleção brasileira diante do uso político que o governo militar estava fazendo do torneio. O ufanismo cantado em verso e prosa deixou em segundo plano os abusos da ditadura, e o presidente Médici se aproximou dos campeões em busca de popularidade.

Era o Brasil do ‘Ame-o ou deixe-o’. Muitos exilados se prepararam para torcer contra nosso time, temendo o fortalecimento do governo militar.

Foi só começarem os jogos, entretanto, para todos gritarem gol e fazerem festa a cada vitória dos nossos.)

1970, SETEMBRO - UMA VISITA INESPERADA DA MORTE

(Setembro começou bem, mas terminou mal. Muito mal.

Uma visita inesperada da morte. Que notícia terrível. Flávio morreu em um acidente de automóvel. (Flávio Muylaert, 20 anos, era irmão mais novo de Eduardo). Que triste 30 de setembro de 1970.

Janis Joplin morreu de overdose no dia 4 de outubro (de 1970). Tinha 27 anos, era apenas dois anos mais velha do que eu. A cantora tinha estado no Brasil no Carnaval e adorado. Sua voz gravada continua me emocionando. O maior dos guitarristas, Jimmy Hendrix, que havia sido seu namorado, tinha morrido poucos dias antes, em 18 de setembro, também de overdose, com 27 anos. Mais uma trágica coincidência.

Diante do fato consumado da morte, ainda mais a do irmão, por mais que se tente, é difícil achar o que dizer.

Procuramos ser solidários. As fórmulas não convencem, embora muitos ainda insistam em repetir meus sentimentos, meus pêsames e coisas tais. O medo de desafinar, de ser inconveniente, de falar num tom falso, é grande.

Às vezes é melhor calar, mas somos instados a nos manifestar. Não há situação mais difícil de enfrentar, até porque nem sabemos muito bem o que estamos sentindo diante da perda.

E nem o que os outros podem esperar de nós.)

Janis Joplin em cena do documentário 'Janis: Little Girl Blue' Foto: Zeta Filmes/ Divulgação

“O Vietnã não está mais nas primeiras páginas dos jornais. Parece que as atividades bélicas estão muito reduzidas. Li hoje no Estado que, no México, na assembleia da Associação Americana de Imprensa (AAI), o diretor Júlio de Mesquita Neto declarou que ‘não há liberdade de imprensa no Brasil’.” (Carta do avô, 22/10/1970)

“Hoje, Allende tomou posse como presidente do Chile e, nos Estados Unidos, 100 milhões de eleitores elegeram deputados, senadores e cinco governadores. Estou curioso para saber o resultado e torcendo para que Nixon fique em minoria na Câmara e no Senado. Cada dia tenho mais antipatia pelo Nixon.” (Carta do avô, 3/11/1970)

Charles de Gaulle Foto: Bettmann/Divulgação

(Só se falava nisso naquela manhã fria de terça-feira, dia 10 de novembro de 1970, recorda-se Eduardo.

Pompidou, o presidente da República, acabara de ser avisado que seu antecessor, De Gaulle, tinha morrido na véspera, aos 80 anos. O general tinha se retirado para sua propriedade em Colombey-les-Deux-Églises após renunciar à presidência, em 27 de abril de 1969, tão logo foi rejeitado o referendo por ele proposto sobre a regionalização e a reforma do Senado. De Gaulle havia governado a França por onze anos, formulado o regime constitucional da Quinta República e era considerado o grande herói da Segunda Guerra. Minha imagem dele era ambígua. Aprendi a admirá-lo pela extraordinária capacidade de liderança política e pelo uso que fazia da palavra na comunicação.

Por outro lado, tinha certa rejeição à sua faceta autoritária, pois ele era um comandante feroz quando entendia necessário, como se viu em maio de 1968.

O pequeno rádio de pilha fazia boa companhia nas horas de estudo ou de descanso, com música e notícias. As estações mais populares, como a RTL, eram muito barulhentas, com seus apresentadores entusiasmados, como Guy Lux.

Tinham também muita publicidade. Até hoje me lembro da propaganda muito repetida de um novo spray desodorizador que criticava os concorrentes: “Chega de batatas fritas com odor de rosas!”. A TV era mais interessante, embora precária.

O embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher foi sequestrado no dia 7 de dezembro de 1970, no Catete, Rio de Janeiro. A ação foi comandada por Carlos Lamarca, já então muito visado. O sequestro foi o mais longo, a negociação para sua libertação só terminou em 13 de janeiro. Setenta presos políticos embarcaram para o Chile, a maior parte militantes da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR.)

Carlos Lamarca em registro de maio de 1968; ele deu aulas de prática de tiro para funcionárias do Bradesco por causa da onda de assaltos a agências bancárias Foto: Oswaldo Luiz Palermo/Estadão

“Já é o segundo Natal que passamos longe, e se já sentimos muita falta de vocês no outro, calcule então este ano!” (Carta da mãe, 16/12/1970)

(Vivi a euforia da chegada em 1969, segue Eduardo. Apesar das dificuldades enfrentadas pela família no Brasil e das notícias da ditadura, a vida simples de estudante em Paris me encantava. Eu estudava muito, amava Silvia e me sentia feliz. Tínhamos alguns bons amigos e um apartamento aconchegante e confortável. Tudo ia bem em 1970: passávamos nos exames, tivemos a deliciosa visita do avô, que conviveu alguns dias conosco, a ida à Itália e as férias na Grécia. Até que veio a terrível notícia da morte de Flávio, e o mundo nunca mais seria o mesmo. Ainda assim, cheguei a 1971 com ânimo para aproveitar tudo e seguir em frente até a defesa da sonhada tese. Mas nem sempre tudo sai como desejamos. Embora, então, não soubéssemos, foi em janeiro de 1971 que sequestraram e desapareceram com o ex-deputado Rubens Paiva, pai do escritor Marcelo Rubens Paiva.)

“Ontem foi metralhado, na esquina da alameda Casa Branca com a Rua Barão de Capanema, o presidente da Ultragaz, senhor Boilesen, um dinamarquês de 57 anos, naturalizado brasileiro e residente aqui havia vinte anos. Às 9h30 saiu de casa na Rua Estados Unidos, foi fechado por dois VW, saiu pelo lado direito, atravessou a rua correndo e caiu vazado por balas de metralhadora, doze no crânio, junto uma foto do local. Os terroristas deixaram panfletos dizendo que o senhor Boilesen era agente da CIA, financiador e dirigente da operação Bandeirante. A repercussão foi tremenda porque ele era muito conhecido e dirigia uma das maiores organizações comerciais de São Paulo.” (Carta do avô, 16/4/1971)

(Ao lado da minha vida de estudante, com muito trabalho, mas também muita satisfação, acabava vivendo, por meio da correspondência, a vida da família, com algumas alegrias e muitas dificuldades, narra Eduardo.

Embora percebesse repetidos anseios em torno da nossa volta, eu sabia que estava no lugar certo, me preparando para um futuro construído a partir da experiência e do conhecimento. O Brasil vivia uma fase pobre de ideias com o insuportável panorama político da ditadura. Era, portanto, a fase ideal para eu me preparar o melhor que pudesse.

Apesar da ditadura, o Supremo Tribunal Federal teve muitas atitudes corajosas, não cedendo a pressões como as que pretendiam livrar da Justiça os integrantes do Esquadrão da Morte.

Após dois anos morando na Avenue Jean Moulin, fomos admitidos e mudamos para a Casa do Brasil, na Cidade Universitária Internacional. Amigos da família tinham se oferecido para interferir junto ao embaixador do Brasil, mas nem sequer levamos a sério essa hipótese, até por acreditar que pudesse não passar de bazófia. De todo modo, não queríamos qualquer favor dos representantes do governo militar. Quanto mais longe, melhor)

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